Page 259 - Revista da Armada
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EDITORIAL



                         Hermínia Silva





                 Calou-se uma voz amiga da Marinha





           ra  minha intenção, relativamente à edi·                         "Rosa enjeitada", "Fado mal  falado",  "'Casa
           ção da Revista da Armada de Outubro                             da Mariquinhas'" e ""Marinheiro americano"?
       Epróximo,  mês  em  que,  no  dia  23,                                E quem, de entre nós,  marinheiros,  pode
       Hermínia Silva  completaria  80  anos de                            esquecer aquele célebre "Gonçalo Velho",
       idade, trazer algo, a estas páginas, sobre uma                      cantado pela primeira  vez, com  tanta  garra,
       das mais populares cantadeiras de sempre,                            tanta emoção, tanto fervor patriótico e tanto
       homenageando assim, de maneira singela                              amor à Marinha, no palco do velho e já desa·
       mas sentida, quem  tantas vezes manifestou,                          parecido Teatro Apolo,  no já  longínquo ano
       quer por palavras, quer por actos, uma gran0                        de 1933, por essa  azougada rapariguinha  de
       de admiração e  um desvelado carinho pela                            20 anos, envergando, orgulhosa, a fa rda
       Marinha Portuguesa.                                                 branca de marinheiro, ostentando na  fita  do
         Quis porém o destino, aquele mesmo que                             boné o nome "NRP Gonçalo Velho"?
       ela  tão bem cantava no celebrado "Fado da
       sina" do saudoso filme dos anos quarenta                              ... É nwis uma farta/s/com que a Milrinha de
       'Vm homem do Ribatejo", que a sua morte se                           Guerra/vai doravante  cOl/tar/ao defender,  com
       antecipasse à concretização de tal desígnio, precisamente no dia   nobrs/este pedaço de terra/que nos custou a gal/har ..
       de Santo António,  padroeiro da cidade que a viu  nascer, esta
       Lisboa de fadistas, de varinas e de marinheiros, que tanto exaltou   A Marinha foi,  de facto,  uma  das suas grandes paixões.
       e que tanto amou. Por isso aqui estou evocando a sua memória,   Quem sabe se teria  tido alguma  influência o facto de, aos 8
       num preito decerto compartilhado por toda a nossa Corporação.   meses de idade, na sequência duma  queda  da  janela dum :zo
         É que a Nação não é somente o escol intelectual e refinado
                  das suas personagens pePlsantes  e "ulIIdI1ntes, mas
                   também e principalmente a grande massa  das
                     gentes anónimas e humildes que labutam dia·
                            ·a-<iia e que, com as suas virtudes, os
                             seus defeitos e até por vezes as suas
                        .1   contradições,  marcam e identificam
                            a genuína alma  nacional e o con~
                           quente sentir do  povo, ora  triste, ora
                          alegre, ora pacífico, ora aguerrido, mas
                          sempre sentimental e solidário.  E nin·
                         guém  melhor do que os cantores popu·
                         lares para encarnarem  tais estados de
                          espírito.
                            Foi  precisamente o caso de Hermínia
                          Silva,  que,  sem  fazer
                           esquecer    nomes
                            grandes e legendá·               andar, providencialmente amortecida por uma giga com horta·
                            rios  do portugue-               liça,  ter sido socorrida  no  Hospital  da  Marinha.  E foi  aqui,
                            síssimo  fado,  a                durante muitos anos e enquanto a sua saúde lho permitiu, que
       que Eça  de Queirós se dignou atribuir o              tive o ensejo de poder apreciar todo o seu  talento, toda  a sua
       nome de "canção nacional", como Maria                 verve, toda a sua graça, todo o seu poder de comunicação, nas
       Severa, Júlia  Florista, Alfredo Marceneiro e         Festas de Natal dedicadas aos doentes, em que, à mistura com
       Fernando Farinha, sem ter pisado salões senho--       os seus habituais apartes· "anda  Pacheco", "mais a carácter",
       riais como a maviosa e expressiva Maria Teresa        "uns Jaquinzinhos  e uns peixinhos da horta pr'á sossega", "era
       de Noronha, também ela  recentemente faleci·          uma granda  camarada a Mariquinhas"  .... nunca faltava  uma
       da, e sem ter tido a projecção intemaóonal da   •     palavra de elogio e de amizade para a sua querida Marinha .
       insigne  Amália  Rodrigues, foi  com  certeza  a        Embora  homenageada  publicamente em  vida, com  o  1 ~
       fadista  mais castiça  deste século,  tendo tido o   I   Prémio Nacional de Teatro Ligeiro, por António Ferro, e com a
       condão de  transformar uma  melopeia  dolente,   ,    Ordem do Infante D.  Henrique, por Mário Soares, pôs sempre
       lamurienta e nostálgica,  numa canção alegre,         acima dessas honrarias, terrenas e efémeras, cônscia da  peque-
       optimista, pitoresca e até  por vezes irónica  e      nez e fragilidade do ser humano, uma  profundíssima devoção
       brejeira. Quem  não se lembra, com idade para   I  religiosa, que certamente lhe há·de ter  mitigado a angústia
       tal, das suas extraordinárias criações, interpre-  _   duma morte que sentia aproximar--se paulatinamente.
       tadas de forma  inimitâvel, e que foram  ines·          Por tudo o que  fez  pela  Marinha  e por  Portugal, obrigado,
       quecíveis êxitos, como  "Velha tendinha",             Hermínia Silva!                                  ..t

                                                                                       REVISTADA ARMADA ·  AGOSTO 93  5
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