Page 96 - Revista da Armada
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No bagaço (excelente e tão
esperado) o jovem miliciano
resolveu fazer esquecer, ou
esquecer-se, do seu embaraço
inicial e, já com voz entaramc-
lada, propôs uma saúde ao cão
"Petinga", que se tinha mostra-
do um herói e lhes salvou o
pitéu devolvendo a alegria.
Uma salva de palmas rubori-
zou-lhe ainda mais as boche-
chas, ainda brancas do
Fevereiro da L.lpa, e Jercmills
foi mandado chamar para tra-
zer o cão benfeitor.
Foi um choroso Jeremias que,
à ordem do patrão Mário, ap.1-
receu, respondendo seco e só:
-O cão morreu!
Depois da estupefacção, do
esbugalhar de olhos, da mão
rápida apertando o figado, ini-
ciou-se um concerto de vómi-
Jeremias, que, ainda com 24 naso e assim elimmava-se essa garganta, logo se obteria a tos, de cólicas, de pedidos ime-
impecáveis dentes, os mostra- travessa maligna. prova real. diatos de lavagens ao estôma-
va sem cerimónia e com agra- Jeremias, espantado, porque Das três travessas foi tirado go, de c1isteres profundos, de
do. toda a vida comeu daquilo e um pouco para a gamela de mais bagaço, de azeite com
Só que, em vez de sopa, os nunca lhe falaram em makun- cão e o restante regressou ti gindungo, enquanto um sus-
criados apresentaram-se com das dessas, viu o penetrar das cozinha para um apertão de surro de pequenas orações a
três enormes travessas de mís- colheres no guisado espesso, calor. Deus ou despedida ã família
caros, que deixavam o seu esperou o minuto necessário. Jeremias, cada vez mais sur- abafava outros sons, inestéti-
sabor abrasar a gula, e que As criadas de copa tiraram preso, lá chamou, com assobio cos e atrevidos, na mesa do
tinham constituido a novidade os belos exemplares de prata de três tons, o cão "Petinga"', patrão Mário, e audlveis por D.
desse ano. Era uma surpresa, genulna, com bicha gravada, um esfomeado permanente Marília, sempre presente a
ideia já não se sabe bem de que se apresentaram na sua que aceitaria de bom grado tal prudente distância.
quem, mas que mobilizou no original cor e brilho. Foi um prova dura. Jeremias olhava bem nos
dia anterior uma série de miú- suspiro de alívio, uma alegria E assim foi. "Petinga" comeu lábios do patrão, encobertos
dos para, em jorna completa, sincera e uma nova oportuni- todos os cogumelos e lambeu a pelo enorme bigode, e viu a
aparelharem os cogumelos nos dade para Jeremias voltar a rir, gamela até ficar de brilho novo sua angústia e tristeza, pois
matos da redondeza. ainda com mais vontade, pois e, deliciado, iniciou urna ronda sabia o amor que ele, também,
Quando o patrão Mário se não conseguia disfarçar uma pela mesa, convidado a con- tinha pelo "Petinga".
preparava, encantado, para certa e maliciosa ironia. vidado, reclamando mais con- D. Marília, com O seu pelo-
servir o mais velho dos seus Quando, pela vez segunda, o forto. tão de criadas de copa e cozi-
amigos, um dos convidados patrão Mário se preparava Quando a conversa ia atin- nha, o enfermeiro e ajudantes
novos (tinha chegado de para honrar a sua mesa, o gindo o seu tom normal, o da Fazenda, foi acudindo um a
Lisboa como oficial miliciano, jovem alfacinha, mais transpi- jovem convidado, olhando um, que, agonizantes, se rebo-
colocado em Luanda) disse, rado que o guisado, mas desta baixo e com três copos de lavam em volta das visceras.
alto e bom som, mais num vez em tom suave de apelo, verde já bebidos de trago, mos- Nunca imaginou Jeremias
grito de pânico do que num disse: trou-se convencido, pediu des- que aqueles 16 convidados, e
aviso de alerta: - Perdoem-me, mas não culpas e quase tentou gracejar mesmo os poucos novatos, rea-
- Mas islo são cogumelos tenho crédito no valor dessa pegando nos talheres, num gissem assim com a morte do
bravos! São venenosos, Dr. eventual reacção qurmica. sinal de que estava pronto a "Petinga", que afinal, para
Mário, são mortais! Desculpem-me, mas eu não vos atacar e que aquele medo nada bem dele, coitado, foi bem
As bocas abertas fecharam- acompanho. Que D. Man1ia me mais era do que uma boa brin- rápida. Com sua permanente
se, provocando obviamente o perdoe a indelicadeza. cadeira. irrequietude, e talvez entonte-
silêncio, mais ainda o engolir Jeremias, de boca fechada, Infatigável, Jeremias tocava cido por toda aquela inabitual
seco. Os olhos, esses, não lar- voltou a ouvir o silêncio, mas as criadas de copa para que, algazarra, o cão saltou para a
gavam as travessas e o seu viu, no sobrolho franzido do num galope, trouxessem o picada exactamente quando o
perigoso conteúdo, enquanto a patrão, que tão bem conhecia, petisco de novo, para a já agas- "Relógio", condutor de uma
gabarolice foi metida no saco que este já não estava a achar tada mesa. Patrão Mário, ser- das camionetas da Fazenda,
da verdade. nenhuma graça ao "topete", vindo então o seu velho amigo, entrou na curva apertada da
D. Marília, que não estava como ele diria, do jovem ofici- deu ordem de marcha e pratos entrada da casa grande. Nem o
sentada à mesa, para H deixar al. Mas a educação vale a paci- encheram-se e esvaziaram-se enorme pé do "Relógio" no
os homens mais ã vontade", ência e, com o grande bigode num ápice, o pão farto limpou travão salvou o "Petinga", que
acudiu de imediato mandando caldo no beiço, patrão Mário o molho cheio de gindungo, os ficou estendido na vala com a
buscar três grandes colheres de pensava rapidamente no que copos fo ram levados à boca espinha partida em duas e o
prata, do seu faqueiro de noi- fazer. O seu velho amigo lem- com avidez, gozo e sinceros estômago cheio de míscaros,
vado, e rapidamente explicou brou que se poderia dar o louvores, para se esperar pela bem bons! .t
que, se alguma ficasse escura, pitéu a provar a um cão e, tenra carne da galinha de
então seria porque um, e basta- assim, enquanto eles petisca- mato, pelo ensopado de cabrita P. Mildmdo
va um, dos míscaros era vene- vam outra coisa e molhavam a nova e pelos suculentos etc's. crEN
22 MARÇO 93 • REVISTA DA ARMADA