Page 105 - Revista da Armada
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outros e fazia do jornal, apesar das limi-  benéfica, que, além do mais, congregan-  limpeza, que num qualquer escritório de
         tações logísticas de bordo, uma publi-  do outros com ele, contribuía para o bem  executivos. – Porque a verdadeira higiene
         cação consistente.                 estar de muitos. Com ele, muitos apren-  é a das intenções...
           Mantinha-se, no entanto, um homem  deram que criar eleva o espírito, princi-  O nosso poeta artífice ousou ser dife-
         só. Quem o procurava, percorria os corre-  palmente de quem cria.     rente e, de alguma forma, libertou-se. A
         dores laterais, ao pôr do sol, e lá estaria  Penso, hoje, depois de tanto sofrimento  ele e a todos os artistas, dispersos, que
         ele, sozinho, olhando o horizonte dis-  humano testemunhado, que através da  por aí desafiam a vida, as minhas sau-
         tante, ou, em dias ventosos, de olhos  arte (qualquer arte), se pode atingir um  dações.
         fechados, silencioso, apreciando o frio  estado de graça capaz de matar até a  Da vida, aceite o caro leitor, ficará ape-
         gratuito, que lhe lavava a alma e o fazia  morte, que vai no coração de cada um de  nas aquilo em que verdadeiramente
         sorrir, suavemente...              nós e com a qual todos temos encontro  acreditamos e pelo qual nos sacrificamos
           Como todos os poetas, tinha uma  marcado.                           com paixão, porque o Homem é frágil e o
         história pessoal cheia de escolhos. Tinha  Ora, desengane-se o leitor, a arte não  tempo é passageiro. Só as construções do
         sido órfão. Um tio, com demasiado gosto  está nas mãos de alguns intelectuais, nem  coração vão perdurar... para sempre.
         pelo vinho, foi a sua família. Veio cedo  nas verdades plastificadas, embebidas em
         para a Marinha, porque gostava da distân-  histórias cor de rosa, vendidas como  Deixo-vos com uma das pequenas e
         cia proporcionada pela ilha, que é cada  objectivos desejáveis, que hoje tantos nos  simples poesias, do nosso marinheiro
         navio, no mar imenso...            querem vender. A arte, a genuína arte,  artista.
           Havia uma namorada, mas também   está na alma anónima de cada um. Todos
         essa lhe causava dor, pois levava uma  a têm, porque a dor é universal, logo a
         vida inconstante de emprego em     criatividade também o deve ser...               À coragem
         emprego, fumava em demasia e não dava  Infelizmente, alguns preferem esconder as  Não se prende o coração.
         a segurança e o amor devidos à filha de  suas lágrimas nos néons que nos ofuscam  Não se mata a vontade.
         ambos – a grande paixão do nosso poeta.  a vida, abafando o seu Eu e o de outros.  Não floresce o medo.
         E escrevia, porque escrever libertava,  Tornam-se assim maus e pobres, muitas
         porque escrever era belo e aliviava a  vezes prejudicando outros no processo,  Só fica o temor do momento
         crueza da vida...                  porque a pior pobreza é a do espírito...  em que, humilhado, aceito
           Foram muitas as horas que passámos a  E é por tudo isto, meus caros amigos,    tal sofrimento.
         falar dos escritos dele, que eu apreciava e  que a pobreza de coração, não é pri-
         sobre temas esotéricos, pouco habituais a  sioneira de dinheiro ou condição social,  Que vivam os poetas!!
         bordo de um navio, das quais guardo  não é exclusiva dos famosos e dos distin-
         gratas recordações.                tos, nem se associa a raça ou religião. É
           O nosso militar era, tenho a certeza,  por isso, ainda, que num sem abrigo da
         um exemplo de coragem e de criatividade  Almirante Reis, se pode encontrar maior                   Doc.


                                               BIBLIOGRAFIA


                   TROVAS do meu pensar e do meu sentir



         Só o nome de “Trovas” desvia para escala de                          desta similitude “Cada qual é como é / mas a
         valia menos presunçosa a poesia que se nos                           poesia é só uma”, para nós, Roberto Durão
         apresenta. Vêm-nos à ideia as linhas da                              vai sem dúvida mais longe, possui outros
         Literatura que falavam de trovadores aí pelos                        alicerces, avança em poesia mais rasgada,
         primeiros séculos da nossa História. Mas tal                         mais livre, mais solta, e, sem enjeitar a rima e
         ideia logo se desvanece perante um conteúdo                          a métrica, também manda passear a sonori-
         que já não pergunta “sabedes novas de meu                            dade dessa música e rasga em frente, descon-
         amor, ai Deus i u é” e vai antes para o entre-                       traído e importante por caminhos muito mais
         laçar de palavras e de ideias com desfecho                           soltos. É talvez, mesmo, a sua melhor poesia,
         inesperado e fundo realmente poético. E o                            cheia de lirismo, cheia de vigor, de valor
         interesse, longe de se quedar pelo roman-                            poético, enfim.
         tismo de antanho, cresce a par e passo que                           Uma nota de agrado igualmente para o pre-
         nos embrenhamos pelas páginas adiante.                               fácio de António Manuel Couto Viana, muito
         Com que suavidade e gosto se avança pelas                            bem elaborado e desenvolvido, da mesma
         páginas fora! É um livro leve e delicioso este                       forma que para a capa, originalidade e ade-
         do coronel Roberto Ferreira Durão – 140                              quação, que completa bem o conteúdo, obra
         páginas que se passam com a avidez de ler                            de Pedro Dória.
         mais, tal é o gosto que desperta a sua leitura.                      Como camarada agradavelmente surpreendi-
         O nome de Roberto Durão não é propria-                               do com a aparição destas belas páginas –
         mente o de um qualquer desconhecido que                              como livro é uma estreia – deixamos aqui
         se abalança arrojadamente a apresentar um livro. Ele já vinha  com o maior gosto a notícia do seu aparecimento, uns versos que
         escrevendo em revistas e jornais, militares e não só; já vinha  vale a pena ter ao lado, e não dizemos que vale a pena ler, pois
         criando um nome. Livros, ainda não.                  não é pena, é prazer. (Até eu agora fiz esta rima). A Revista da
         Professor largos anos no Colégio Militar, cavaleiro, comando,  Armada agradece o exemplar oferecido.
         combatente, a sua mão direita deixada em África. E se, por vezes,
         nos faz lembrar o Aleixo, com suas quadras vivas e surpreenden-                            Sousa Machado
         temente perspicazes, e embora ele próprio responda a propósito                                      CMG
                                                                                      REVISTA DA ARMADA • MARÇO 2001  31
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