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Património Cultural da Marinha
             Património Cultural da Marinha


                                         Peças para Recordar





                                    25. UM LIVRO DE BOLSO DO REI D. CARLOS


                O rei D. Carlos, sabemos bem, foi um distinto pintor, cuja vocação se definiu quando tinha tenra
             idade. Recebeu lições de Tomaz da Anunciação, que foi director das Galerias de Pintura do Palácio
             Real da Ajuda e, depois, de Miguel Ângelo Lupi. Para aperfeiçoar a técnica de aguarela, seu pai,
             D. Luís, convida Henrique Casanova.
                D. Carlos ascende ao trono em 1889 mas, apesar dos seus afazeres, encontra sempre um tempo livre
             para desenhar e pintar. Participa em exposições. É consagrado como grande artista.
                Sendo de profissão e hierarquia real, como nos diz Ramalho Ortigão, D. Carlos não é um pintor
             palaciano, intérprete de elegâncias privilegiadas, retratista de duquesas etéreas e de vaporosas prince-
             sas. Não é encantado pelos provocantes atractivos de moda, de elegância, de luxo cosmopolita de
             castelo ou de casino. O que elege são as paisagens do torrão alentejano e das campinas do Ribatejo,
             dos lugares dos casais, dos montes, das vastas searas, da charneca perfumada. Ramalho fala-nos ainda
             do mar da costa de Portugal. Neste mar, em frente do terraço da cidadela de Cascais, não navegou
             durante quinze anos embarcação de alto bordo, de pesca ou de cabotagem, cuja forma e cuja fisiono-
             mia, de uma ou outra vez, não fosse reproduzida graficamente e não ficasse inscrita nos registos do
             artista invisível, que do interior dessa habitação régia, durante algum tempo a envolveu, como a luz
             benigna dos faróis, na cariciosa estima da arte.
                Estas palavras que destacamos da homenagem prestada a D. Carlos, ainda no ano em que este
             soberano foi assassinado (1), valem por terem sido escritas por quem, durante anos, não poupou o
             soberano nas suas bem conhecidas Farpas.
                Pois bem, o livrinho de bolso que hoje apresentamos, no qual o rei tomou os seus apontamentos
             para futuras pinturas, contem mais de meia centena de aguarelas e esboços a lápis, em páginas com as
             dimensões de 158x93 mm. Alguns dos navios representados identificam-se pelos nomes escritos à
             margem, como acontece com o Bissau, o Afonso XIII, o Loanda, o Emma der Netherlanden, o
             Baltimore. Um outro, o Goaland, vapor francês, de rodas laterais, além do nome, tem a data de 5 de
             Fevereiro de 1890. A Vega, também está datada de Novembro de 1890. Assim, ficámos, a saber o
             período em que este livro foi utilizado. E neste é importante dizer-se, a qualidade das aguarelas é tal
             que mostra bem que Casanova não foi mais do que mestre de D. Carlos e não, como por vezes se pre-
             tende insinuar, quem ajudou e deu os últimos retoques aos seus trabalhos. De facto, o traço e o modo
             como usa o pincel mostram bem o artista que foi o penúltimo rei de Portugal.
                Existe um outro livrinho, de dimensões idênticas, no Museu Soares dos Reis, mas onde D. Carlos
             apenas deixou desenhos a lápis.
                Como é que esta preciosa peça veio parar ao acervo do Museu de Marinha? Sem dúvida que a
             serendipidade (2) tem muita força no trajecto das obras de arte. Veja-se este caso: No dia 12 de Junho de
             1981, inaugurou-se no Museu de Marinha a exposição “O Rio Tejo-Fotografias”, onde se apresentava
             uma pequena parte desse magnífico espólio que é o arquivo fotográfico deixado por Henrique Seixas.
             Entre os convidados estava Ivo Cruz. António Cardoso apresentou-me este insigne maestro que, a meio
             da conversa, nos disse que tinha visto na Livraria Campos Trindade, um livro de aguarelas do rei D. Carlos.
             Corremos à rua do Alecrim 44 e Tarcísio Trindade, apesar de não ter a obra à venda, atendendo a que ela
             iria para o sítio certo, estabeleceu o preço simbólico de 45 contos e a aquisição faz-se de seguida. Foi
             assim que entrou no Museu de Marinha esta bela recordação dum rei que foi artista e marinheiro.


             (1) S.M. El-Rei D. Carlos I e a Sua Obra Artística e Scientífica, Lisboa, 1908.
                I parte: “A Obra Artística”, por Ramalho Ortigão,
                II Parte “A Obra Scientífica”, por Albert Girard.
             (2) Revista da Armada nº 277 Jun 95.
                                                                                              Museu de Marinha
                                                                                  (Texto de A. Estácio dos Reis, CMG)
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