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HISTÓRIAS DA BOTICA (6)




                                            O Poeta
                                            O Poeta






              odos tivemos porventura períodos  deixam – percorri, noites a fio, certas ruas  simples e livre, onde se encontra paz. Por
              difíceis, em que a vida parece um  de Lisboa, habitadas por outras almas  esse tempo, enfim, descobri que a poesia
         T mar revolto, tempestuoso... Para  penadas, que, como eu, fugiam de fantas-  fala de factos reais e objectivos, só que os
         alguns, o panorama fica demasiado  mas ferozes que molestam a alma. Nessa  poetas são homens tristes...
         negro, a solidão demasiado pesada e,  altura, partilhei cervejas e conversas, com  Conheci já muitos poetas, em muitos
         numa noite escura, decidem deixar de  cidadãos que habitam em becos escuros e  terrenos da vida, de todas as idades e
         viver... Aqueles que resistem, enrique-  de má reputação, pobres e sem nome,  profissões. Na Marinha também há muitos
         cem, ficam mais fortes e melhores pes-  mas ricos em histórias.       – penso mesmo que a palavra saudade
         soas.                                Nessa época, ainda, descobri que Avec  deve ter sido inventada por um mari-
           Também eu sei o que é estar só. Num  le temps de Leo Ferré é a canção mais  nheiro. De todos, recordo aqui um artí-
         tempo que nunca está longe – porque o  bela do mundo, que uma determinada  fice, que em tempos conheci numa fragata
         tempo de cada um, saberá o leitor, não se  árvore (na frente do Hospital de São José),  moderna. Era um homem de meia idade,
         mede em anos ou meses, mas em      tem alma profunda e que há um momento  adaptado, mas solitário. Muito magro,
         emoções, e algumas emoções nunca nos  do dia (uns segundos antes do sol nascer),  usava um bigode fino e retorcido, sobre
                                                                                    uma face exageradamente branca,
                                                                                    contrastando com um cabelo baço
                                                                                    e negro, quase sem vida. Lembrava
                                                                                    um intelectual tísico, do princípio
                                                                                    do século XX, daqueles que se
                                                                                    passeavam em sanatórios, imacu-
                                                                                    ladamente limpos, em montanhas
                                                                                    secas e frias, sempre de uma
                                                                                    beleza extraordinária. Com estes
                                                                                    tristes homens do passado, parti-
                                                                                    lhava – como mais tarde pude
                                                                                    constatar – algum desencanto, por
                                                                                    uma vida marcada por um padecer
                                                                                    lento e insidioso.
                                                                                      Coordenava um jornal de bordo,
                                                                                    que me interessou pela novidade.
                                                                                    Era muito participado pela guar-
                                                                                    nição, sobretudo pelos mais jo-
                                                                                    vens. Havia artigos, sérios, sobre
                                                                                    muitos assuntos: cinema, música,
                                                                                    automóveis, motos e, pasmo dos
                                                                                    pasmos, havia uma página com
                                                                                    poesia. Ainda que o jornal fosse
                                                                                    alvo do ostracismo e da crítica de
                                                                                    muitos, era uma publicação inte-
                                                                                    ressante, muito mais rica que os
                                                                                    habituais jornais de bordo e pela
                                                                                    conjugação de vontades que reu-
                                                                                    nia, uma grande manifestação de
                                                                                    harmonia. Sob todos os aspectos,
                                                                                    tal publicação constituía uma
                                                                                    oposição forte à cultura pimba, que
                                                                                    hoje controla o nosso meio – prin-
                                                                                    cipalmente audiovisual. Provava,
                                                                                    também, que um grupo de pessoas
                                                                                    simples pode marcar a diferença.
                                                                                    Era, se o leitor quiser acreditar,
                                                                                    pelo conteúdo artístico, um desas-
                                                                                    sombrado acto de coragem a bordo
                                                                                    de um navio.
                                                                                      O nosso poeta tinha sido o prin-
                                                                                    cipal impulsionador e escritor da
                                                                                    maioria das poesias. Encorajava,
                                                                                    frequentemente, colaborações de

         30 MARÇO 2001 • REVISTA DA ARMADA
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