Page 140 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS DA BOTICA (7)



             O Monstro e a Criança
             O Monstro e a Criança






              o capítulo da beleza, cada um trans-  dizer os mesmos divertimentos que os cama-  belo das “Quatro Estações” de Vivaldi.
              porta consigo o que herdou. Para a  radas, sem grandes preocupações com o facto  O tempo foi passando e encontrou-se um
        Nmaioria de nós, quer o confessemos  de qualquer pretendente feminina, o olhar  ritual, silencioso, em que eu me sentava no
         ou não, a carcaça com que fomos dotados  com um misto de espanto e perplexidade  parque do helicóptero ou na tolda, já após o
         vem sempre cheia de insuficiências, reais ou  (senão medo), por tal combinação física. Ia,  jantar, a navegar. O Monstro vinha e repetia a
         imaginárias, mas sempre importantes. Alguns  mais tarde pude perceber, porque gostava de  mesma senha: venho perturbar Doutor?
         têm, todavia, que transportar um fardo mais  música, qualquer música...  Sentava-se e, sempre em silêncio, fazia uma
         pesado que outros, porque o ser humano to-  Tinha um sistema estereofónico em minia-  selecção de músicas, com um eclectismo sur-
         lera mal a diferença e repetidamente, de forma  tura, mas muito eficaz, que o seguia para todo  preendente, ordenadas por uma sequência
         infeliz, castiga os menos dotados...  o lado e era o seu orgulho. Num fim de tarde a  que só ele conhecia, mas que combinavam
           Houve em tempos um Marinheiro Manobra  navegar, estava eu sentado na tolda daquela  bem... Com o tempo, outros se nos juntaram
         em que, de facto, as feições rudes assustavam  corveta velha, a saborear o fresco e a liberdade  neste ritual, tornando-se um momento impor-
         qualquer um. Apresentava uma testa proemi-  da noite vizinha, chegou o Monstro e a sua  tante do dia. Para muitos era uma fuga à rotina
         nente, encimando um nariz exageradamente
         largo, descentrado e mal relacionado com uns
         olhos pequenos. A boca, igualmente pequena,
         exibia dentes pontiagudos, mimetizando as
         presas de um qualquer carnívoro. Tudo isto
         complementado por um corpanzil imenso de
         1,95 m e cerca 110 kg de peso, com grande
         exuberância capilar, logo abaixo da face bar-
         beada. A marcha era igualmente inquietante,
         lenta e ameaçadora, fazendo sobressair um
         tronco quadrado, maciço, que parecia despro-
         porcionado em relação aos membros compar-
         ativamente curtos, esmagados pelo peso do
         tórax. Digamos que, se o leitor fizer um
         esforço de imaginação, o nosso marinheiro
         parecia um figurante de um qualquer filme
         pré-histórico, só que, nele, a maquilhagem
         seria desnecessária.
           Por tudo isto, compreensivelmente, ficou
         cognominado a bordo como o Monstro – inspi-
         rando-se a marujada cruel, no personagem do
         filme da Walt Disney, a Bela e o Monstro.
           Havia contudo sempre paz no seu sem-
         blante, que transparecia numa voz segura,
         rouca, de cantor de jazz, não sujeita a gritinhos
         ou a irritações – imperturbável. Na verdade, o
         nosso Monstro naval não parecia muito angus-
         tiado com o cognome que lhe atribuíram. Vivia
         dedicado às suas tarefas de bordo, como se
         tudo fosse irrelevante. Penso, mesmo, que há já
         muitos anos tinha percebido que a mãe
         natureza estava a dormir a sesta, quando  estereofonia. Delicado, perguntou - venho per-  da navegação. Com o passar do tempo, um
         chegou a vez de lhe atribuir proporções.   turbar Doutor? Respondi-lhe que não que  respeito, sem palavras, cresceu à volta dos que
           Já no que diz respeito à força física e agili-  podia ligar a música...  ouviam a sua música.
         dade dava cartas. Tinha feito a escola do tra-  E ouvimos um conjunto de melodias, por  Um belo dia, num bar - esplanada de Sines,
         balho do campo. Um trabalho esforçado de  ele escolhidas, que eram belas e acrescen-  estava a corveta em serviço SAR, vagueava eu
         carregar sobre as costas tudo, desde grandes  taram sabor ao momento. Nesse dia, pela  quando fui convidado para tomar um copo,
         pedras, a cestos de vindima, pelos socalcos do  primeira vez, percebi que tinha um dom.  por um pequeno grupo de oficiais. Um con-
         Douro, de onde era oriundo.        Tinha sentimentos profundos. Sabia retirar a  vite irrecusável, visto o ambiente parecer fol-
           A bordo levava uma vida normal, ignoran-  força que há em “Eu caçador de mim” de  gazão, nessa tarde luminosa, do princípio de
         do os piropos com que regularmente era  Milton Nascimento, perceber o desencanto  Junho. Estávamos em suave cavaqueira, quan-
         brindado e aos quais nunca reagia violenta-  em “I still haven´t found what I´m looking for”  do se começou a ouvir uma criança que
         mente. Ao contrário, era prestável e estava  dos U2 e acreditar na esperança de Ivan Lins  chorava ansiosamente. A princípio ninguém
         sempre pronto a ajudar, mesmo a quem não  em “Começar de novo”. Juro, mesmo, que  pareceu reparar nas breves interrupções, ao
         lhe perdoava o semblante. Fora do navio, per-  quase lhe vi lágrimas, um dia, em que o  decorrer da conversa, impostas pelo choro afli-
         corria os mesmos antros de perdição, que  encontrei a ouvir um excerto extremamente  tivo. Foi a continuação e a intensidade do

         30 ABRIL 2001 • REVISTA DA ARMADA
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