Page 145 - Revista da Armada
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Património Cultural da Marinha
Património Cultural da Marinha
Peças para Recordar
26. OS ATLAS DO VISCONDE DE SANTARÉM
Manuel Francisco de Barros e Sousa de Mesquita de Macedo Leitão e Carvalhosa nasceu a 17 de Junho de
1791 e foi o 2º Visconde de Santarém. Figura notável de erudito que viveu com entusiasmo o fervilhar de ideias
que marcaram a Europa do seu tempo dedicou a maior parte da sua vida à cultura, aos estudos históricos e à
análise política e diplomática. É o exemplo do homem metódico e persistente, o espírito “positivo” que pre-
coniza a observação atenta dos factos e documentos, a crítica, a classificação e catalogação, acreditando que
nesse “grão a grão” construirá o edifício do conhecimento. Foram, seguramente, essas qualidades que lhe vale-
ram a escolha para Guarda-mor da Torre do Tombo, e foi no exercício desse cargo que recebeu de Martin
Fernandez de Navarrete (presidente da Real Academia de Madrid) um especial pedido de esclarecimento sobre
dados e documentos que haveria em Portugal acerca das viagens de Américo Vespucio. O facto deve tê-lo obri-
gado a alguma investigação documental, apercebendo-se de como eram falsificados os dados históricos rela-
tivos às viagens marítimas europeias dos séculos XV e XVI, e foi nessa altura que lhe surgiu a ideia de elaborar
um atlas histórico que compilasse os mais significativos monumentos da cartografia antiga. Dessa forma poderia
esclarecer-se como evoluíra o conhecimento geográfico e qual o papel que nele tiveram os Descobrimentos
Portugueses. Não conseguiu fazê-lo de imediato, porque as circunstâncias políticas do momento não lhe deram
a calma e a disponibilidade que seria necessária, mas a oportunidade acabaria por vir mais tarde, numa outra
circunstância em que os direitos portugueses em territórios da África Ocidental eram postos em causa por
alguns deputados franceses (Estancelin e D’Avezac) que os reclamavam para a França. O Visconde de Santarém
estava exilado em Paris, na sequência dos conflitos que opuseram liberais e absolutistas nos anos de 1833 e 34,
mas não deixou de atender o pedido do então Ministro do Negócios Estrangeiros português (o Conde de Vila
Real), elaborando em 1841 uma Memória sobre a prioridade dos descobrimentos portugueses na costa de África
Ocidental, acompanhada de um atlas com reproduções de cartas europeias diversas, posteriores ao século XIV.
Esta memória e o respectivo atlas serviriam para ilustrar e complementar a edição da Crónica da Conquista da
Guiné, de Gomes Eanes de Zurara, que estava perdida, mas de que o Visconde encontrara uma cópia em Paris,
nesse mesmo ano (nessa cópia de Paris estava a foto do “homem de chapelão” que se pensa ser um retrato do
infante D. Henrique).
A ideia entusiasmara-o e, no ano seguinte, viria a publicar, a expensas do governo português, uma obra com o
título Recherches sur la découverte dês pays situes sur la cote occidentale de l’Afrique, au-dela du Cap Bojador,
e
et sur lés progrès de la science géographique, après lés navegations dês portugais, au XV siècle;... acompa-
e
nhées d’un atlas composé de mappemondes et cartes pour la plupart inédites, dressés depuis le XI , jusq’au
e
XVII siècle. As cartas destinadas ao atlas que compunha esta obra, não foram todas editadas em 1842, vindo a
surgir nos anos seguintes, até 1844.
Na continuação da ideia que (provavelmente) lhe vinha desde o pedido de esclarecimento de Navarrete, a sua
pesquisa continuou e em 1849 iniciaria a publicação de um Essai sur l’histoire de la cosmographie et de la car-
e
tographie pendant le moyen-age, et sur lés progrès de la géographie aprés les grandes découvertes du XV siècle,
pour servir d’introdution et d’explication a l’Atlas composé de mappemondes et de portulans, et d’autres monu-
e
e
ments géographiques, depuis le VI siècle de notre ère, jusq’au XVII . Como podemos imaginar, na elaboração
dos três atlas, o Visconde de Santarém não se deve ter poupado a esforços, percorrendo as mais importantes bi-
bliotecas e arquivos da época, reunindo um imenso manancial de informação geográfica que acabaria por não
ficar terminado à data da sua morte (pelo menos não estava perfeitamente organizado). O espólio veio quase
todo para Portugal, mas houve uma parte que se perdeu com as mudanças e em dois naufrágios marítimos, de
forma que acabou por ficar disperso durante alguns anos, com uma classificação precária. Deveu-se a Jordão de
Freitas a ordenação e indexação da maioria dos exemplares cartográficos que compuseram os diferentes atlas, e
ainda de múltiplas cartas dispersas, que se destinavam a completar a obra começada em 1849 e que não chegou
a ser acabada. Uma especial consideração e confiança levou a que boa parte desse espólio cartográfico viesse a
ser oferecido à Biblioteca e Museu da Marinha, em 1935, pelo 3º Visconde de Santarém.
Contudo, a estas preciosíssimas cartas, vieram a acrescentar-se outras da mesma origem que integravam a bi-
blioteca particular do Comandante Manuel Norton, que tinham sido por ele estudadas e classificadas e que o
Museu adquiriu no ano de 1949. A obra magistral do Visconde de Santarém é, sem sombra de dúvidas, um dos
melhores documentos para a História da Cartografia e do conhecimento geográfico humano; e o exemplar do
Museu de Marinha em 4 volumes, composto pelo legado do 3º Visconde de Santarém e pela colecção do
Comandante Manuel Norton, constitui uma preciosidade que só pode ser comparada ao espólio que ficou na
posse da família e que os seus descendentes têm pugnado em preservar. È uma das peças do património da
Marinha de que nos devemos orgulhar, não só pelo valor cultural e científico que encerra, mas também pela
confiança que em nós depositou quem nos entregou um legado com esta dimensão.
Museu de Marinha
(Texto de J. Semedo de Matos, CTEN FZ)