Page 176 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS DA BOTICA (8)
A um amor
A um amor
Nestes dias choro naves de guerra dos últimos conflitos Na navegação que se seguiu surgiu
pela alegria que antes perdi mundiais, até galeões e naus de outros uma modificação importante na conduta
tempos, em madeira, que encomendava do feliz Kamikaze, notada por todos – as
Na alegria que sinto nas lojas da especialidade, ou no “secas” tinham-se tornado mais curtas,
junto de ti... estrangeiro. Foi esta actividade que me raras mesmo. Pareceu a todos que uma
interessou, já que as montagens eram de parte importante de si próprio, tinha sido
In “poemas ao amor”, Diogo Silva primeiríssima qualidade e, ao contrário preenchida. De algum modo, o nosso
do que nele era usual, falava da história camarada deixou de sentir a necessidade
os rabiscos mal amanhados, a que, de cada navio com calma, discernimento de interessar todos os outros pelo que
sem alternativa, chamo caligrafia, e sensibilidade – sem obsessão. sabia, ou sentia. Passou, escrevi eu nessa
Dsaltou desta vez a memória de uma altura, “a sentir-se acompanhado, naquela
malograda paixão. O paciente leitor, conhe- Nas celebrações do Dia da Marinha, parte íntima do Eu, que controla tudo o
cedor das minhas histórias anteriores, estavam os navios abertos a visitas, que somos , queremos ou sabemos e,
reconhecerá que é um tema recorrente. deparei-me num dos corredores laterais sobretudo, responsável por gostarmos de
Tal é inteiramente verdade, são muitas as com uma antiga colega de faculdade. Em nós próprios”...
histórias de amor na vida em geral e mais verdade, não tinha tido relação de grande
ainda no universo dos marinheiros... amizade com ela, durante os 6 anos do A relação continuou, a doutora vinha
O amor pode causar extrema alegria, curso. Após o curso, ela voltou para regularmente a Lisboa, telefonavam-se,
ou uma tristeza desmedida. Pode obrigar- Aveiro a sua cidade natal. Por cortesia, escreviam cartas, que todos queríamos
-nos a feitos grandiosos, ou impor uma decidi ser eu a conduzi-la no passeio a ler, mas que o Kamikaze, escondia com a
gélida indiferença. Toma muitas formas, bordo. Não pense o atrevido leitor, a esta própria vida..
de inúmeros tons, sons e cheiros. Por ele altura, que os objectivos da minha visita Passaram os meses e um dia a colega
já todos rimos ou chorámos. Por ele já guiada eram outros... Na verdade, esta pediu-me para ser portador de um cur-
alguém foi morto e outros se mataram. O antiga colega dava vida ao adágio, rículo seu a um dos Hospitais de Lisboa –
amor é a vida. O amor, sabe no seu ínti- comum entre os alunos da faculdade, que percebi que a relação estava séria. De
mo o leitor, somos nós... punha na boca de cada pai a seguinte facto, com o passar do tempo o Kamikaze
pergunta: “queres ser bonita, ou queres ir parecia outro. Calmo e sorridente, encon-
Conheci em tempos um oficial triste, para medicina?” Ora esta filha tinha sido, trei-o a estudar as várias ofertas de crédito
que vivia quase só para a Marinha, capaz sabia-o eu, muito boa aluna... imobiliário. Estava, agora, tal como todos,
de trabalhar horas a fio nos projectos a desejoso que chegasse o fim de semana,
que se dedicava. Era habitual passar no Lá lhe mostrei, pormenorizadamente, a para ir a Aveiro. Tudo parecia bem. Como
seu gabinete dezoito e mais horas por dia. enfermaria, as cobertas, com os seus em todas as relações, tinha crescido.
O trabalho era tudo para ele. Pela dedi- expressivos decors carnais, a casa das
cação obsessiva era conhecido, como é máquinas, a cozinha, a ponte e as Infelizmente, na vida acontece-nos fre-
habitual na Marinha, por um nome carac- câmaras. No trajecto, entreaberto, estava quentemente o imprevisível – capaz de
terístico - o Kamikaze. o camarote do Kamikaze. A exposição mudar subitamente o rumo de uma vida –
Muitos o consideravam maçador, uma dos muitos modelos de navios interessou- a esses acontecimentos, alguns chamam
vez que só parecia conhecer e falar de -a muito. Quis saber que navio era um, destino, outros a vontade de Deus, eu, em
trabalho. Era já um homem de meia outro e mais outro. Atrapalhado, decidi verdade, ainda não sei como chamar, mas
idade, magro e precocemente grisalho, chamar o autor de tais obras. Quando bem conheço...
sem nenhuma característica especial a chegou, apresentei-os e deixei que o Num fim de semana, em que era a vez
não ser uns óculos de lentes espessas, que nosso oficial falasse. Este, com grande da doutora descer a Lisboa, houve um ter-
lhe conferiam um ar de alucinação cróni- alegria, lá foi explicando, com todos os rível acidente. A doutora faleceu na estra-
ca. Não se lhe conheciam amizades femi- pormenores cada embarcação a tão interes- da, vítima de um motorista de camião,
ninas. Nem tinha verdadeiros amigos sada interlocutora. Foi de tal modo, que bêbado...
entre os camaradas, que fugiam das passado algum tempo me senti a mais. Saí
muitas e prolongadas “secas” por ele do camarote e só então reparei que a Foi então que realmente a minha
infligidas, sobre temas como a génese minha antiga colega usava óculos seme- relação com o Kamikaze começou. Foi a
geológica das Berlengas, a importância lhantes aos óculos do construtor de mode- mim que coube dar a notícia. Ouviu sem
das correntes no assoreamento do Tejo e los navais.... dizer nada, não chorou e saiu rapida-
muitos outros, que após a primeira hora mente. Tinha na face o horror daqueles
de conversa, cansavam até os mais E foi, aconteceu, para grande espanto que vão perder a vida, rasgados de dentro
pacientes. da Câmara, a doutora voltou ao navio nos para fora...
Também com a família não tinha uma outros dias no porto. Levava o Kamikaze Durante uma semana ninguém o viu.
relação muito estreita, visto que quase no seu automóvel e iam lanchar juntos, Decidimos ir ao apartamento onde mora-
todos os seus moravam na Beira Interior. ele delicadamente convidou-a para jantar va. Lá estava, a barba por fazer, a casa a
Como actividade recreativa montava algumas vezes a bordo. Parecia estar a cheirar mal dos restos de comida, havia
embarcações de todos os tipos, em nascer uma relação, digamos, asséptica, um ar abafado e opressivo. O ambiente
miniatura. Desde réplicas em plástico de mas satisfatória para os dois. frio da depressão tinha-se instalado.
30 MAIO 2001 • REVISTA DA ARMADA