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HISTÓRIAS DA BOTICA (8)



                                     A um amor
                                     A um amor






                   Nestes dias choro        naves de guerra dos últimos conflitos  Na navegação que se seguiu surgiu
               pela alegria que antes perdi  mundiais, até galeões e naus de outros  uma modificação importante na conduta
                                            tempos, em madeira, que encomendava  do feliz Kamikaze, notada por todos – as
                  Na alegria que sinto      nas lojas da especialidade, ou no  “secas” tinham-se tornado mais curtas,
                     junto de ti...         estrangeiro. Foi esta actividade que me  raras mesmo. Pareceu a todos que uma
                                            interessou, já que as montagens eram de  parte importante de si próprio, tinha sido
            In “poemas ao amor”, Diogo Silva  primeiríssima qualidade e, ao contrário  preenchida. De algum modo, o nosso
                                            do que nele era usual, falava da história  camarada deixou de sentir a necessidade
              os rabiscos mal amanhados, a que,  de cada navio com calma, discernimento  de interessar todos os outros pelo que
              sem alternativa, chamo caligrafia,  e sensibilidade – sem obsessão.   sabia, ou sentia. Passou, escrevi eu nessa
        Dsaltou desta vez a memória de uma                                     altura, “a sentir-se acompanhado, naquela
         malograda paixão. O paciente leitor, conhe-  Nas celebrações do Dia da Marinha,  parte íntima do Eu, que controla tudo o
         cedor das minhas histórias anteriores,  estavam os navios abertos a visitas,  que somos , queremos ou sabemos e,
         reconhecerá que é um tema recorrente.  deparei-me num dos corredores laterais  sobretudo, responsável por gostarmos de
         Tal é inteiramente verdade, são muitas as  com uma antiga colega de faculdade. Em  nós próprios”...
         histórias de amor na vida em geral e mais  verdade, não tinha tido relação de grande
         ainda no universo dos marinheiros...    amizade com ela, durante os 6 anos do  A relação continuou, a doutora vinha
           O amor pode causar extrema alegria,  curso. Após o curso, ela voltou para  regularmente a Lisboa, telefonavam-se,
         ou uma tristeza desmedida. Pode obrigar-  Aveiro a sua cidade natal. Por cortesia,  escreviam cartas, que todos queríamos
         -nos a feitos grandiosos, ou impor uma  decidi ser eu a conduzi-la no passeio a  ler, mas que o Kamikaze, escondia com a
         gélida indiferença. Toma muitas formas,  bordo. Não pense o atrevido leitor, a esta  própria vida..
         de inúmeros tons, sons e cheiros. Por ele  altura, que os objectivos da minha visita  Passaram os meses e um dia a colega
         já todos rimos ou chorámos. Por ele já  guiada eram outros... Na verdade, esta  pediu-me para ser portador de um cur-
         alguém foi morto e outros se mataram. O  antiga colega dava vida ao adágio,  rículo seu a um dos Hospitais de Lisboa –
         amor é a vida. O amor, sabe no seu ínti-  comum entre os alunos da faculdade, que  percebi que a relação estava séria. De
         mo o leitor, somos nós...          punha na boca de cada pai a seguinte  facto, com o passar do tempo o Kamikaze
                                            pergunta: “queres ser bonita, ou queres ir  parecia outro. Calmo e sorridente, encon-
           Conheci em tempos um oficial triste,  para medicina?” Ora esta filha tinha sido,  trei-o a estudar as várias ofertas de crédito
         que vivia quase só para a Marinha, capaz  sabia-o eu, muito boa aluna...  imobiliário. Estava, agora, tal como todos,
         de trabalhar horas a fio nos projectos a                              desejoso que chegasse o fim de semana,
         que se dedicava. Era habitual passar no  Lá lhe mostrei, pormenorizadamente, a  para ir a Aveiro. Tudo parecia bem. Como
         seu gabinete dezoito e mais horas por dia.  enfermaria, as cobertas, com os seus  em todas as relações, tinha crescido.
         O trabalho era tudo para ele. Pela dedi-  expressivos decors carnais, a casa das
         cação obsessiva era conhecido, como é  máquinas, a cozinha, a ponte e as  Infelizmente, na vida acontece-nos fre-
         habitual na Marinha, por um nome carac-  câmaras. No trajecto, entreaberto, estava  quentemente o imprevisível – capaz de
         terístico - o Kamikaze.            o camarote do Kamikaze. A exposição  mudar subitamente o rumo de uma vida –
           Muitos o consideravam maçador, uma  dos muitos modelos de navios interessou-  a esses acontecimentos, alguns chamam
         vez que só parecia conhecer e falar de  -a muito. Quis saber que navio era um,  destino, outros a vontade de Deus, eu, em
         trabalho. Era já um homem de meia  outro e mais outro. Atrapalhado, decidi  verdade, ainda não sei como chamar, mas
         idade, magro e precocemente grisalho,  chamar o autor de tais obras. Quando  bem conheço...
         sem nenhuma característica especial a  chegou, apresentei-os e deixei que o  Num fim de semana, em que era a vez
         não ser uns óculos de lentes espessas, que  nosso oficial falasse. Este, com grande  da doutora descer a Lisboa, houve um ter-
         lhe conferiam um ar de alucinação cróni-  alegria, lá foi explicando, com todos os  rível acidente. A doutora faleceu na estra-
         ca. Não se lhe conheciam amizades femi-  pormenores cada embarcação a tão interes-  da, vítima de um motorista de camião,
         ninas. Nem tinha verdadeiros amigos  sada interlocutora. Foi de tal modo, que  bêbado...
         entre os camaradas, que fugiam das  passado algum tempo me senti a mais. Saí
         muitas e prolongadas “secas” por ele  do camarote e só então reparei que a  Foi então que realmente a minha
         infligidas, sobre temas como a génese  minha antiga colega usava óculos seme-  relação com o Kamikaze começou. Foi a
         geológica das Berlengas, a importância  lhantes aos óculos do construtor de mode-  mim que coube dar a notícia. Ouviu sem
         das correntes no assoreamento do Tejo e  los navais....               dizer nada, não chorou e saiu rapida-
         muitos outros, que após a primeira hora                               mente. Tinha na face o horror daqueles
         de conversa, cansavam até os mais    E foi, aconteceu, para grande espanto  que vão perder a vida, rasgados de dentro
         pacientes.                         da Câmara, a doutora voltou ao navio nos  para fora...
           Também com a família não tinha uma  outros dias no porto. Levava o Kamikaze  Durante uma semana ninguém o viu.
         relação muito estreita, visto que quase  no seu automóvel e iam lanchar juntos,  Decidimos ir ao apartamento onde mora-
         todos os seus moravam na Beira Interior.  ele delicadamente convidou-a para jantar  va. Lá estava, a barba por fazer, a casa a
         Como actividade recreativa montava  algumas vezes a bordo. Parecia estar a  cheirar mal dos restos de comida, havia
         embarcações de todos os tipos, em  nascer uma relação, digamos, asséptica,  um ar abafado e opressivo. O ambiente
         miniatura. Desde réplicas em plástico de  mas satisfatória para os dois.  frio da depressão tinha-se instalado.

         30 MAIO 2001 • REVISTA DA ARMADA
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