Page 177 - Revista da Armada
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Parecia mal, quisemos interna-lo, mas Alguns dias depois procurou-me. Pela chorou e gritou tudo quanto quis. Não lhe
recusou insistentemente. O navio ia sair, primeira vez falámos. Falámos de senti- interessaram os outros, ou a vida. Só sen-
quis ir connosco. O Imediato, informado mentos profundos, do amor que viveu, da tia dor...
dos riscos, aceitou que fosse. dor que sentia. Estava profundamente
deprimido e acredito mesmo que, nesses Depois desse dia voltou ás tarefas nor-
Como me pareceu longa essa navega- dias, o meu amigo oficial chegou a achar mais. Mas mudou radicalmente, falava
ção...O Kamikaze não dormia, encontrei-o quentes os braços negros da morte e com voz baixa, doce, como se cada
algumas vezes num angulo morto, abaixo atraente o vazio do abismo... palavra tivesse um peso que antes
da ponte, na chuva e no frio...Levava dias desconhecia. Interessou-se por todos os
sem dizer palavras. Tentámos falar com Uma noite quase três semanas volvidas meus livros – penso que encontrava neles
ele, ajudá-lo, sem resultado. Desesperado e ainda a navegar, fui acordado subita- companhia e compreensão, já que cada
e sem palavras, ofereci-lhe um livro de mente, era o Imediato, o Kamikaze gritava livro tem emoções vivas, quase todas de
poemas - daqueles que guardo na estante que nem um louco no castelo, parecia sofrimento e luta, de vida e morte.
mais íntima e que encerram todas as ver- querer atirar-se ao mar. Aproximei-me Começou ele próprio a coleccionar livros,
dades do Universo. Desse livro decorou e dele, lembro-me que estava uma noite embora retomasse a sua actividade mode-
repetia o poema com que comecei esta fria, e gritei então: o que é? lista. Nunca mais o vi no seu poiso abaixo
história, que se tornou para ele numa espé- Não disse nada, chorou, foi a primeira da ponte.
cie de hino. vez que alguém o viu assim...chorou, Fiquei feliz, parecia que ia sobreviver.
Parecia que como muitos outros
que conheci, tinha guardado a dor
num lugar sagrado, só seu, e, desde
então, carregava às costas, num
saco por ele duramente preenchi-
do, os ganhos de cada dia...
É que, tenho a certeza, todos os
que arrastam na vida a sua dor e
têm a coragem de viver, são pes-
soas grandes. Escolho-os, como o
leitor já percebeu, para estas
histórias, porque me revejo no seu
exemplo, na sua luta. Dão sentido
a este quotidiano infestado por
homens de coração torpe e mente
mesquinha, vendidos à mentira
(que medra nos seus próprios
espíritos) e à corrupção barata, que
grassa impune. E, deveras, gostaria
um dia de compreender porquê a
uns a vida parece correr bem, ape-
sar da imoralidade a que chegaram,
e a outros, que reconheço como
valentes e bons, lhes acontecem
desgraças. Tristemente, na vida é
muitas vezes assim, quando pen-
samos que estamos no caminho
certo, seguros de nós próprios, algo
acontece que nos deita por terra.
Talvez um dia possamos, todos,
compreender o incompreensível.
Até lá, cada um terá, também, que
aceitar a sua dor...
Encontrei recentemente o nosso
oficial. Sorriu e falou de um dos
livros de Lobo Antunes, que agora
lia. Tinha um ar profundo. Eu tam-
bém sorri, por dentro, e acredito
que a doutora, lá onde estiver,
também deve ter sorrido pela
memória do amor que por cá
deixou. Afinal, essa memória, doce
e segura, deve ter evitado que o
Kamikaze fosse levado no vento da
sua autodestruição. E nele, quero
crer, no seu Eu profundo, ela
viverá para sempre. É sempre
assim quando o amor é ver-
dadeiro...
Doc.
REVISTA DA ARMADA • MAIO 2001 31