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HISTÓRIAS DA BOTICA (11)
À dignidade
À dignidade
ejo cada vez menos televisão. Por -Hoje não piorou - respondia-lhe eu, que precisou de ser ventilado mecanica-
um lado falta-me o tempo, por contando as palavras.. mente.
V outro, também eu, como muitos, Algum tempo depois o seu coração em
acho que os programas actuais, sem con- Saía silenciosa. Sabia, intimamente, a falência, deixou de bombear sangue sufi-
teúdo e sem profundidade, são desprovi- verdade, apesar da resposta automática ciente para manter uma pressão arterial
dos de qualquer interesse...Não pense o que eu fornecera... estável. Num período de maior instabili-
leitor que se trata de falsa moralidade. Com o tempo, uma ligação de amizade dade hemodinâmica, acabou por fazer
Embarquei e pude constatar que a arte cresceu entre nós, de tal modo que, lesões cerebrais importantes. Sobrevivia,
cinematográfica apresenta muitos estilos, mesmo quando eu não estava de serviço, agora, graças ao ventilador e a drogas
alguns em que a acção é mais importante ia cumprimentá-los e saber como ia o vasopressoras, que lhe mantinham, artifi-
do que os diálogos...Sempre achei, que paciente. Este via o seu estado agravar até cialmente, a pressão arterial.
como tudo na vida, esses
filmes fazem parte da cultura.
Nunca censurei quem os vê,
nem lhes atribuo qualquer
marca moral aviltante...
Ora, há bem pouco tempo,
ouvi casualmente um dos
actores de um destes reality
shows, tão na moda, comen-
tar, a pedido de uma solicita
locutora, a eutanásia. E lá
falou a estrela em ascensão
sobre a eutanásia, com o
mesmo à vontade, com que se
fala da refeição de amanhã,
ou da falta que o Jardel faz ao
Futebol Clube do Porto...
E por ter ouvido falar sobre
o assunto e em especial por
estar triste – hoje, dia em que
mais uma vez vi partir alguém
– lembrei-me do Sr. Almirante,
que conheci, há muito, numa
unidade de cuidados inten-
sivos. Estava internado por
uma doença intratável do foro
cardíaco, com grande degra-
dação do estado geral. En-
quanto pôde falar, contou-me
dos seus embarques, dos
navios em que andou –
“navios para homens rijos de
outro tempo” – das comissões
em África, em Macau e até
tinha estado em Timor ...
Conheci também a esposa,
uma senhora digna de olhos
límpidos, com um leve sota-
que estrangeiro, que nunca
identifiquei. Perguntava por
mim aos outros médicos. Sen-
tia-se perdida desde que o
marido tinha sido transferido
para aquele hospital civil.
– Como está ele hoje, doutor?
– perguntava em cada dia.
30 AGOSTO 2001 • REVISTA DA ARMADA