Page 284 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS DA BOTICA (11)



                                   À dignidade
                                   À dignidade






              ejo cada vez menos televisão. Por  -Hoje não piorou - respondia-lhe eu,  que precisou de ser ventilado mecanica-
              um lado falta-me o tempo, por  contando as palavras..            mente.
         V outro, também eu, como muitos,                                        Algum tempo depois o seu coração em
         acho que os programas actuais, sem con-  Saía silenciosa. Sabia, intimamente, a  falência, deixou de bombear sangue sufi-
         teúdo e sem profundidade, são desprovi-  verdade, apesar da resposta automática  ciente para manter uma pressão arterial
         dos de qualquer interesse...Não pense o  que eu fornecera...          estável. Num período de maior instabili-
         leitor que se trata de falsa moralidade.  Com o tempo, uma ligação de amizade  dade hemodinâmica, acabou por fazer
         Embarquei e pude constatar que a arte  cresceu entre nós, de tal modo que,  lesões cerebrais importantes. Sobrevivia,
         cinematográfica apresenta muitos estilos,  mesmo quando eu não estava de serviço,  agora, graças ao ventilador e a drogas
         alguns em que a acção é mais importante  ia cumprimentá-los e saber como ia o  vasopressoras, que lhe mantinham, artifi-
         do que os diálogos...Sempre achei, que  paciente. Este via o seu estado agravar até  cialmente, a pressão arterial.
         como tudo na vida, esses
         filmes fazem parte da cultura.
         Nunca censurei quem os vê,
         nem lhes atribuo qualquer
         marca moral aviltante...

           Ora, há bem pouco tempo,
         ouvi casualmente um dos
         actores de um destes reality
         shows, tão na moda, comen-
         tar, a pedido de uma solicita
         locutora, a eutanásia. E lá
         falou a estrela em ascensão
         sobre a eutanásia, com o
         mesmo à vontade, com que se
         fala da refeição de amanhã,
         ou da falta que o Jardel faz ao
         Futebol Clube do Porto...

           E por ter ouvido falar sobre
         o assunto e em especial por
         estar triste – hoje, dia em que
         mais uma vez vi partir alguém
         – lembrei-me do Sr. Almirante,
         que conheci, há muito, numa
         unidade de cuidados inten-
         sivos. Estava internado por
         uma doença intratável do foro
         cardíaco, com grande degra-
         dação do estado geral. En-
         quanto pôde falar, contou-me
         dos seus embarques, dos
         navios em que andou –
         “navios para homens rijos de
         outro tempo” – das comissões
         em África, em Macau e até
         tinha estado em Timor ...
           Conheci também a esposa,
         uma senhora digna de olhos
         límpidos, com um leve sota-
         que estrangeiro, que nunca
         identifiquei. Perguntava por
         mim aos outros médicos. Sen-
         tia-se perdida desde que o
         marido tinha sido transferido
         para aquele hospital civil.
           – Como está ele hoje, doutor?
           – perguntava em cada dia.

         30 AGOSTO 2001 • REVISTA DA ARMADA
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