Page 397 - Revista da Armada
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Património Cultural da Marinha
             Património Cultural da Marinha


                                         Peças para Recordar





                             33. DOIS SANTOS DA COMPANHIA DE JESUS


               As imagens de Santo Inácio de Loyola e São Francisco Xavier contam-se dentro as mais preciosas peças do nosso
             Museu de Marinha, representativas de um estilo artístico muito peculiar e de um notável momento histórico do país.
             Foram esculpidas na Índia, no século XVII, e pertenceram a um dos conventos de Diu (S. Domingos, Santa Mónica ou
             S. João de Deus), extintos em 1834. Nessa altura ficaram à guarda da confraria de Nossa Senhora do Rosário, deposi-
             tadas no armazém da Igreja Matriz de Diu, de onde vieram para Lisboa e entregues ao Museu de Marinha, em 1956.
             São duas figuras em madeira exótica, de grande expressividade e requinte, características de um estilo derivado do
             maneirismo italiano surgido em Portugal na segunda metade do século XVI, e levado ao Oriente e Brasil pelos padres
             da Companhia de Jesus.
               Santo Inácio de Loyola é a figura mais alta (ci. 1,73m) e está representado com o ar grave de um mestre pedagogo,
             severo no gesto mas suave no olhar. A sua imagem inspira o respeito que suscita o homem experiente e sábio, seguro
             da sua mensagem e com uma bondade paternalmente compreensiva. Como é sabido, foi ele o fundador da
             Companhia de Jesus, no século XVI, e a sua vida passou por uma variedade de experiências que vão do soldado
             valente, ansioso na precariedade que sente na vida, até ao sentido apostólico de uma igreja desmoralizada e em crise,
             com grande dificuldade em enfrentar os movimentos da reforma protestante, que são – para além de tudo – a
             emergência de uma rotura cultural. E esta representação deixa fluir esta mesma vivência, na sua parte madura, quando
             a decadência do corpo ferido em combate reclama a imortalidade do espírito, e projecta o homem para a acção mis-
             sionária. É como se na pregação da mensagem de Cristo realizasse o sonho da ressurreição. O homem vai-se fazendo
             santo na acção apostólica, libertando-se da agonia da morte em cada leitura, em cada pregação, em cada palavra
             dada. Por isso Santo Inácio se apresenta como o professor perfeito, no gesto e na expressão. Tem na mão esquerda o
             livro da regra da ordem (representação tradicional do santo), e está vestido com a sotaina de burel, com um pregueado
             minucioso (muito à maneira desta fase artística, em que desponta já o barroco), cingida na cintura por um fio gros-
             seiro, e apertada no peito com uma abotoadura até ao colarinho.
               S. Francisco Xavier um pouco mais baixo que Santo Inácio e, por isso, a sua estátua apenas tem 1,68m, o que deno-
             ta a intenção do artista num certo realismo da representação e sugere uma orientação comum na elaboração das duas
             esculturas. Contrariamente ao que é costume na imagética indo-portuguesa – que o representa com uma certa idade e
             barba severa – esta figura é a de um jovem glabro que olha lacrimoso para o céu, à espera de uma ventura. Dizia-se
             na Índia que falava pouco, mas as suas poucas palavras eram sempre comoventes ao ponto de suscitarem lágrimas. E
             ele próprio se comovia no enleio da pregação, facto que popularizou a sua representação a olhar para o céu e com o
             rosto em lágrimas. Também está vestido com sotaina da ordem, com um roquete de franja bordada e uma estola
             própria para os actos litúrgicos, que o santo segura com ambas as mãos.
               S. Francisco Xavier é o Apóstolo da Índia, adoptado pelos portugueses e popularizado por todas as missões religiosas
             do Oriente, visto como o paradigma da abnegação em benefício da mensagem religiosa. Nasceu no castelo de Xavier
             (Navarra) e era filho de uma família com algumas posses, mas viveu uma infância devassada pela guerra que lhe cau-
             sou grande angústia e desassossego. Com menos de vinte anos estudava em Paris onde conheceu Santo Inácio cujas
             palavras o fascinaram. Em 1540 veio para Lisboa e, no ano seguinte, partiu para a Índia onde foi Superior da
             Companhia de Jesus. Passou por Goa, Cochim, Ceilão, Malaca, Japão (onde foi recebido pelo imperador) e China.
             Morreu a 3 de Dezembro na ilha de Sanchoão (China), onde foi desembarcado muito doente, na companhia de um
             dos seus discípulos orientais, e o corpo foi transferido para Goa, onde a veneração do seu túmulo ultrapassou os limi-
             tes do mundo cristão. Foi com a ida de S. Francisco para a Índia que ali entraram os jesuítas, alargando-se a sua acção
             em poucos anos e devendo-se-lhes a criação de variadíssimas escolas e colégios, hospitais, núcleos de pregação e
             apoio social, criação da primeira oficina de imprensa e publicação de livros. De forma que a pregação jesuíta sempre
             tomou a imagem do santo como modelo da sua acção levando a que se tornasse uma das figuras mais imprtantes do
             culto cristão no Oriente. Santo Inácio surge nos conventos e igrejas da Índia porque é o fundador da Companhia de
             Jesus, mas a Companhia de Jesus só ganha a notoriedade que teve, graças à figura de S. Francisco Xavier.
               Juntamente com o culto mariano, a paixão e morte de Cristo (que encerra em si a imagem da imortalidade, pela
             ressurreição), o tradicional Santo António (companheiro de todas as viagens portuguesas), S. Francisco de Assis, os dois
             santos da Companhia de Jesus foram dos mais populares do hagiológico indo-português, de que existem várias ima-
             gens de maior ou menor valia. Estas que agora pertencem ao Museu de Marinha são das mais notáveis, pela riqueza
             da própria escultura e pela qualidade artística, fazendo com que já tenham sido apresentadas em diversas exposições
             nacionais e internacionais.

                                                                                Museu de Marinha
                                                                                (Texto de J. Semedo Matos, CFR FZ)
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