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HISTÓRIAS DA BOTICA (14)
O Combatente
O Combatente
á não muito tempo, numa Urgên- de biscates e morava numa caravana, qual “era preciso ter o serviço militar
cia de um grande hospital da capi- velha, num parque de campismo dos cumprido”, outro, um revolucionário exi-
H tal alguém gritava: subúrbios. lado em Paris na época colonial, tinha
- Olhe que eu já matei por Portugal!! – Mas agora não dorme exactamente ocupado o lugar...
era um homem de meia idade, desgre- porquê? – perguntei eu, tentando ser Casou, mas divorciou-se, pouco tempo
nhado e de barba por fazer. Aproximei- objectivo. depois. Não conseguia explicar à mulher a
-me dos gritos. No caminho um enfer- Não dormia porque era como se tudo ansiedade da espera, os gritos da refrega,
meiro saía irritado afirmando: mais um fosse real. Ainda sentia os cheiros de África, nem o sangue do amigo morto, que lhe
doido. É o terceiro hoje! a humidade no tarrafo, o capim na face, o salpicara a cara. Se tinha pesadelos? Não,
De perto o homem, apesar da tinha poucos pesadelos, porque
agitação, tinha um ar digno. Era dormia pouco...Eram mesmo os
alto, com um ar sólido de quem dias que o enervavam...
é capaz de mover montanhas, a Tudo isto, achava ele, não
barba, já grisalha, assentava sob interessava a ninguém no país
uma tez morena, de homem do actual, E não compreendia
campo. Olhava directamente nada...não compreendia um
nos olhos da sua interlocutora: país em que as ruas se
uma médica, por quem eu não enchem de dejectos de cães e
tinha muito apreço – no geral, senhoras com nome de cão,
conflituosa e pouco estimada por como Lalá e Bibi, artificiais e
todos os outros naquela equipa secas, preenchem os serões de
de urgência. Era até conhecida, televisão. Não percebia, ain-
entre os mais novos, pela peço- da, porquê pouco se falava do
nhenta, uma vez que da sua pele António, nem de todos os que
emanava um brilho pouco natu- partiram por servirem, a custo
ral, certamente graças aos muitos da própria vida, uma causa
cremes de beleza, com que be- que lhes havia sido impos-
suntava a face. ta...Não compreendia, final-
Tratava-se de uma discussão mente, porquê, no nosso país
por papéis, em que a peço- se obliterava como se de um
nhenta argumentava de ma- segundo se tratasse, uma guer-
neira agressiva, afirmando que ra que marcou gerações...Pelo
a “ficha” do paciente não exis- menos no Vietname há filmes,
tia. Este defendia-se dizendo as pessoas revêm o seu so-
que não sabia nada de “fi- frimento, parece haver reco-
chas”, esperava haviam já 3 nhecimento – dizia com dor
horas e queria ser atendido. no olhar.
Então, com a humildade pró- Lembrei-me, recentemente,
pria de um simples interno, deste Combatente. Nestas
avancei e disse, a tão ilustre férias de Verão vi que na para-
clínica, que ia atender o se- da de um antigo quartel, onde
nhor. Que se acalmasse, que existe uma placa com os
outros doentes com “fichas” no devido camuflado colado ao corpo, o peso, frio, da nomes dos mortos em acção, nos vários
lugar esperavam por ela... metralhadora nas mãos... Mas o pior, o conflitos em que o regimento participara,
Fui movido pela curiosidade, anteven- pior, era a sensação de medo... tinham construído um lago de aspecto
do a história que tal homem produziria. A emboscada e o sangue do António, nada condizente com o lugar, nem com o
Queria saber afinal quem ele matou e que ainda sentia nas mãos, o amigo que respeito merecido por aqueles que já par-
porquê? Conversámos, então, num corre- segurara nas mãos, até ao último estertor. tiram e cuja memória dignifica o lugar.
dor movimentado, onde todos passavam Era véspera de Natal, tinham ido tomar Pareceu-me um sacrilégio. Seria como
demasiado apressados para nos ouvir. banho a um riacho próximo, quando construir um lago de patos sobre os mon-
Queixava-se de insónias, há já uma foram atacados...O António era o ges sepultados, num qualquer átrio de
semana que não conciliava o sono... primeiro da fila – percebe doutor – os tur- igreja...Pareceu-me ainda pior, porque
Tinha combatido nas tropas especiais ras apontaram a quem vinha à frente... esse quartel, agora transformado em par-
da guerra de África, na Guiné. Já fora Tudo lhe voltava, num ciclo infindável que turístico, é gerido por militares...
casado mas a mulher deixara-o. Os seus de medo, agressividade e sofrimento... Na verdade, acredito, que poucos países
dois filhos viviam com a mulher, que Achava que não tinha tido do país, por revelaram, pelo menos na época actual,
lhes dizia que o pai não prestava. Desde quem arriscou a vida, qualquer reco- tanto desrespeito pelos seus veteranos de
o final da guerra, tinha tido vários nhecimento. Afinal, quando voltou não guerra. E estou certo, que o Combatente
empregos, mas não os conservara. Vivia lhe tinham reservado o trabalho, para o tem razão. No nosso país, nem mesmo aos
30 DEZEMBRO 2001 • REVISTA DA ARMADA