Page 392 - Revista da Armada
P. 392

HISTÓRIAS DA BOTICA (14)



                               O Combatente
                               O Combatente






               á não muito tempo, numa Urgên-  de biscates e morava numa caravana,  qual “era preciso ter o serviço militar
               cia de um grande hospital da capi-  velha, num parque de campismo dos  cumprido”, outro, um revolucionário exi-
        H tal alguém gritava:               subúrbios.                         lado em Paris na época colonial, tinha
           - Olhe que eu já matei por Portugal!! –  Mas agora não dorme exactamente  ocupado o lugar...
         era um homem de meia idade, desgre-  porquê? – perguntei eu, tentando ser  Casou, mas divorciou-se, pouco tempo
         nhado e de barba por fazer. Aproximei-  objectivo.                    depois. Não conseguia explicar à mulher a
         -me dos gritos. No caminho um enfer-  Não dormia porque era como se tudo  ansiedade da espera, os gritos da refrega,
         meiro saía irritado afirmando: mais um  fosse real. Ainda sentia os cheiros de África,  nem o sangue do amigo morto, que lhe
         doido. É o terceiro hoje!          a humidade no tarrafo, o capim na face, o  salpicara a cara. Se tinha pesadelos? Não,
           De perto o homem, apesar da                                                  tinha poucos pesadelos, porque
         agitação, tinha um ar digno. Era                                               dormia pouco...Eram mesmo os
         alto, com um ar sólido de quem                                                 dias que o enervavam...
         é capaz de mover montanhas, a                                                    Tudo isto, achava ele, não
         barba, já grisalha, assentava sob                                              interessava a ninguém no país
         uma tez morena, de homem do                                                    actual, E não compreendia
         campo. Olhava directamente                                                     nada...não compreendia um
         nos olhos da sua interlocutora:                                                país em que as ruas se
         uma médica, por quem eu não                                                    enchem de dejectos de cães e
         tinha muito apreço – no geral,                                                 senhoras com nome de cão,
         conflituosa e pouco estimada por                                               como Lalá e Bibi, artificiais e
         todos os outros naquela equipa                                                 secas, preenchem os serões de
         de urgência. Era até conhecida,                                                televisão. Não percebia, ain-
         entre os mais novos, pela peço-                                                da, porquê pouco se falava do
         nhenta, uma vez que da sua pele                                                António, nem de todos os que
         emanava um brilho pouco natu-                                                  partiram por servirem, a custo
         ral, certamente graças aos muitos                                              da própria vida, uma causa
         cremes de beleza, com que be-                                                  que lhes havia sido impos-
         suntava a face.                                                                ta...Não compreendia, final-
           Tratava-se de uma discussão                                                  mente, porquê, no nosso país
         por papéis, em que a peço-                                                     se obliterava como se de um
         nhenta argumentava de ma-                                                      segundo se tratasse, uma guer-
         neira agressiva, afirmando que                                                 ra que marcou gerações...Pelo
         a “ficha” do paciente não exis-                                                menos no Vietname há filmes,
         tia. Este defendia-se dizendo                                                  as pessoas revêm o seu so-
         que não sabia nada de “fi-                                                     frimento, parece haver reco-
         chas”, esperava haviam já 3                                                    nhecimento – dizia com dor
         horas e queria ser atendido.                                                   no olhar.
         Então, com a humildade pró-                                                      Lembrei-me, recentemente,
         pria de um simples interno,                                                    deste  Combatente. Nestas
         avancei e disse, a tão ilustre                                                 férias de Verão vi que na para-
         clínica, que ia atender o se-                                                  da de um antigo quartel, onde
         nhor. Que se acalmasse, que                                                    existe uma placa com os
         outros doentes com “fichas” no devido  camuflado colado ao corpo, o peso, frio, da  nomes dos mortos em acção, nos vários
         lugar esperavam por ela...         metralhadora nas mãos... Mas o pior, o  conflitos em que o regimento participara,
           Fui movido pela curiosidade, anteven-  pior, era a sensação de medo...  tinham construído um lago de aspecto
         do a história que tal homem produziria.  A emboscada e o sangue do António,  nada condizente com o lugar, nem com o
         Queria saber afinal quem ele matou e  que ainda sentia nas mãos, o amigo que  respeito merecido por aqueles que já par-
         porquê? Conversámos, então, num corre-  segurara nas mãos, até ao último estertor.  tiram e cuja memória dignifica o lugar.
         dor movimentado, onde todos passavam  Era véspera de Natal, tinham ido tomar  Pareceu-me um sacrilégio. Seria como
         demasiado apressados para nos ouvir.  banho a um riacho próximo, quando  construir um lago de patos sobre os mon-
           Queixava-se de insónias, há já uma  foram atacados...O António era o  ges sepultados, num qualquer átrio de
         semana que não conciliava o sono...  primeiro da fila – percebe doutor – os tur-  igreja...Pareceu-me ainda pior, porque
           Tinha combatido nas tropas especiais  ras apontaram a quem vinha à frente...  esse quartel, agora transformado em par-
         da guerra de África, na Guiné. Já fora  Tudo lhe voltava, num ciclo infindável  que turístico, é gerido por militares...
         casado mas a mulher deixara-o. Os seus  de medo, agressividade e sofrimento...  Na verdade, acredito, que poucos países
         dois filhos viviam com a mulher, que  Achava que não tinha tido do país, por  revelaram, pelo menos na época actual,
         lhes dizia que o pai não prestava. Desde  quem arriscou a vida, qualquer reco-  tanto desrespeito pelos seus veteranos de
         o final da guerra, tinha tido vários  nhecimento. Afinal, quando voltou não  guerra. E estou certo, que o Combatente
         empregos, mas não os conservara. Vivia  lhe tinham reservado o trabalho, para o  tem razão. No nosso país, nem mesmo aos

         30 DEZEMBRO 2001 • REVISTA DA ARMADA
   387   388   389   390   391   392   393   394   395   396   397