Page 253 - Revista da Armada
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Património Cultural da Marinha
Património Cultural da Marinha
Peças para Recordar
40. UM GUACHO DE STUART
Stuart, de seu nome completo José Herculano Stuart Torres de Almeida Carvalhais (1887-1961), foi um desenhador
excepcional com uma breve passagem pela pintura. Dotado de enorme aptidão para comunicar por meio do desenho,
redescobriu Lisboa através da representação de cenas quotidianas, sempre marcadas por um vigoroso humorismo e uma
crítica aos problemas sociais existentes.
Em 1906 começou a sua colaboração no suplemento humorístico do jornal “O Século”, diário de grande implantação
na época que tinha iniciado a publicação, em 1903, da famosa revista “Ilustração Portuguesa”. Em 1907, o artista é um
dos precursores em Portugal da banda desenhada, na ocasião denominada “história aos quadradinhos”, tendo criado o
Quim e o Manecas, duas personagens cujas histórias serão editadas durante quase cinco décadas. A partir de 1911, com
a República, colabora na revista humorística “Sátira” publicando caricaturas que consubstanciam uma visão crítica da
política e dos políticos.
Stuart é considerado então não só o sucessor do grande Rafael Bordalo Pinheiro, que com as suas caricaturas tinha
contribuído para o desmoronar do regime monárquico, como também a charneira entre os velhos caricaturistas e os
novos desenhadores humorísticos. Depois de uma pequena estada em Paris durante parte dos anos 1912 e 1913, em que
colabora na revista “Ruy Blas” e onde vive novas e diferentes experiências, regressa a Portugal tornando-se ilustrador de
capas de revistas, da já citada “Ilustração Portuguesa”, posteriormente da “ABC” e também de textos literários.
Demonstra assim a sua versatilidade, após ter-se afirmado como caricaturista e fundamentalmente desenhador
humorista assume-se como desenhador ilustrador moderno, estabelecendo uma ligação entre a tradição e a renovação.
Os seus trabalhos são publicados nos principais periódicos humoristas: “O Sempre Fixe” e os “Ridículos” e também no
jornal de grande expansão, “Diário de Notícias”. São muito expressivos os desenhos de Stuart relativos a temas maríti-
mos, nomeadamente de navios de guerra, tendo neste âmbito sido assíduo colaborador da “Revista da Marinha”, fundada
em 1937 por Maurício de Oliveira, cujo cabeçalho da capa, desde o início e durante muitos anos, foi da sua autoria.
Também muitos dos livros de Maurício de Oliveira têm capas suas. De referir ainda que um desenho seu do aviso
“Afonso de Albuquerque” figura no topo da vitrine dedicada aquele navio no Museu de Marinha. Em 1949 foi-lhe atribuí-
do pelo Secretariado Nacional da Informação o prémio Domingos Sequeira.
Homem de enormes contrastes Stuart era, no dizer do escritor Aquilino Ribeiro: Um rebelde; mas mais do que isso, por
baixo do seu desmancho de boémio havia um revolucionário.
O guacho que se reproduz na contracapa, foi adquirido pelo Grupo de Amigos do Museu de Marinha e oferecido, re-
centemente, ao Museu. Datado de 1922, representa o momento do naufrágio do segundo aparelho utilizado na 1ª Tra-
vessia Aérea Lisboa – Rio de Janeiro por Gago Coutinho e Sacadura Cabral, que se realizou de 30 de Março a 17 de
Junho de 1922.
Em 18 de Abril, o hidro Fairey, denominado de “Lusitânia”, após ter voado desde a ilha caboverdiana de Santiago, ao
amarar junto do cruzador “República”, localizado perto dos Rochedos S. Pedro e S. Paulo, devido ao estado do mar,
afundou-se. Utilizando unicamente navegação astronómica o “Lusitânia”, tinha ido ao encontro de um navio a 908 mi-
lhas náuticas, após 11 horas e 21 minutos de voo! Proeza inédita até então.
Em 11 de Maio, às 9 horas locais, a bordo de um novo hidro, que tinha sido transportado de Lisboa pelo navio mer-
cante “Bagé” do Lloyd Brasileiro, efectuou-se a largada da ilha de Fernando Noronha, com o objectivo de sobrevoar os
rochedos, onde tinha naufragado o “Lusitânia”, e daí rumar para a costa do Brasil. Às 15.35, por avaria no motor, o hidro
é obrigado a amarar e ao pôr do Sol é calculada a posição astronómica, que corresponde a 4 milhas a Oeste da linha
Rochedos-Noronha e a umas 170 milhas de Fernando de Noronha.
Do relatório da viagem, redigido por Sacadura Cabral, se transcreve: Os flutuadores continuam mergulhados e o hidro
está com cara de não resistir muito tempo....Às 23.45 avista-se uma luz pela amura de estibordo. É um navio, não pode
haver dúvidas...! Faço dois tiros com a pistola de sinais, tiros que são imediatamente correspondidos.
No desenho em questão está representado, em primeiro plano, o hidro com Sacadura Cabral de pé num dos flutuadores,
ambos mergulhados, a ajudar Gago Coutinho, que transporta diversa documentação, a descer do respectivo lugar. A es-
tibordo do aparelho aproxima-se o navio que irá salvar os dois oficiais, o “Paris City”, cujo capitão era A. E . Tamilyn,
proveniente de Cardiff com destino ao Rio de Janeiro, o qual, por ter recebido um aviso à navegação indicando que um
hidro estava avariado na linha Rochedos-Noronha, tinha alterado um pouco o rumo. De salientar que a posição dada pelo
“Paris City” ao “República”, para que este navio viesse recuperar o aéreo e os seus tripulantes, não concordava com a obti-
da no hidro por Gago Coutinho, tendo-se posteriormente constatado que afinal a do Almirante é que estava correcta. No
dia 5 de Junho no terceiro Fairey, o “Santa Cruz”, os dois distintos oficiais da Marinha de Guerra Portuguesa alcançavam
Pernambuco, completando assim a 1ª travessia aérea da Europa à América do Sul.
Ao contemplar esta bela obra de Stuart relembremos o maior feito da Aviação Naval Portuguesa, no ano em que se
completa meio século da sua extinção.
Museu de Marinha
(Texto de José Luís Leiria Pinto, CALM)