Page 320 - Revista da Armada

HISTÓRIAS DA BOTICA (23)

O Comandante,
O Comandante,

os sonhos e o mistério...
os sonhos e o mistério...

ncontrei, há pouco tempo, o Coman- Recordei-me, ainda, do Comandante que – Para muitos é uma doença inesperada –
dante de um navio em que embar- a despeito da sua sobriedade - era capaz que lhes obriga a vida a uma reviravolta
Equei. Era um homem que me mar- de sorrir ao grumete, enjoado, no quarto profunda – para outros foi o investimento
cara. Muito sério, impressionou-me na de vigia na asa da ponte, sem chalaça, que não resultou, ou qualquer outro aci-
altura pela paixão que tinha pelo mar e com respeito e empatia.... dente, imprevisto, de percurso, que lhes
pela mestria com que dominava o navio, Pareceu-me que o Sr. Comandante estava alterou o objectivo, as expectativas...
no revolto mar dos Açores, naqueles a ficar sem sonhos. Qualquer homem sem Expliquei-lhe então, calmamente, que
meses de Inverno ventoso... Passara quase sonhos fica triste. Não tem objectivos e muitas vezes também eu sinto que algures
toda a sua carreira devia ter voltado à
embarcado... direita, e, contudo,
Parecia-me, ainda me sinto na
agora, muito mais estrada da esquer-
velho – mais velho da. Não adianta
do que a idade que olhar para trás e
realmente tinha. pensar que se de-
Continuava um veria ter feito isto,
homem circuns- ou aquilo, não adi-
pecto, mas o olhar anta lamentar esta
tinha perdido o ou aquela decisão,
cintilar de paixão neste ou naquele
que antes possuíra. sentido. Interessa
Procurou-me, desta apenas aquilo que
vez, pelos meus ao longo da estra-
serviços clínicos. da vamos constru-
Estava cansado, indo e a coragem
dizia. A sua vida de para aceitar cada
mar não lhe havia dia como ele é,
servido de muito... aliviados pela fuga
Nos filhos, os lon- apressada dos fan-
gos anos de ausên- tasmas, que nos
cia deixaram as molestaram duran-
suas marcas. A te a noite, assusta-
mulher também, de dos pelo brilho da
alguma forma, sen- luz da manhã e
tia amargura, pelos por aquilo que a
sacrifícios que custo, é certo, nos
tivera de suportar preparamos para
sozinha...Por outro atingir...Apesar de
lado, uma grande tudo e de todos...
ansiedade o afligia, Ele, em particu-
visto que não vislumbrava o desfecho que esquece, facilmente, tudo o que foi e tudo, lar, deveria pensar na real motivação da sua
gostaria para a sua carreira militar - de bom, que conquistou ao longo da vida. vida, por tantos testemunhada, norteada
Afirmava, com mágoa, que outros, menos Em alguns, instala-se uma angústia opres- pelo dever e pela responsabilidade, honesta,
esforçados nas lides do mar, pareciam com siva, potenciada por pesadelos na forma de para com os outros...
melhores hipóteses de carreira. Não lhe “e se eu tivesse feito isto...”, ou “porquê não Decidi devolver-lhe o sonho. Liguei a
parecia isso justo, a ele que tanto dera à fiz aquilo...”. Ideias destas atacam a coberto alguns oficiais da Guarnição antiga e
Marinha... da noite, com capacidade de atingir pro- combinámos um jantar. Nesse jantar
Lembrei-me então do homem que havia porções de catástrofe, se deixadas livres foram sucessivamente elogiadas, de
conhecido, na ponte do navio, seguro e como lobos á solta. maneira informal, espontânea, as capaci-
feliz. Do homem capaz de fazer comen- É uma situação perigosa. Não admira dades profissionais e humanas do
tários poéticos sobre a beleza das ondas, que a pressão arterial estivesse a subir... Comandante, por outros que, como eu, o
no oceano revolto, a quem o enjoo nunca Temos, acredite o leitor, pouco controlo estimavam e respeitavam. Ouviu calado e
chegava e que conhecia, profundamente, o sobre as coisas importantes da nossa vida – hirto, como lhe era habitual...
mar, como se parte do seu sangue fosse já o amor, a vida e a morte não estão nas No final ficámos só os dois. Voltei a
salgado. Lembro-me do homem que citava nossas mãos. Muitos, equivocados, acredi- relembrá-lo que o seu trabalho não peca-
Camões e que falava dos descobrimentos e tam que conseguem controlar o seu futuro. va por falta de reconhecimento, ou
dos feitos portugueses com orgulho. É a pior mentira dos tempos modernos. importância ...todos nós o reconhe-

30 SETEMBRO/OUTUBRO 2002 • REVISTA DA ARMADA