Page 68 - Revista da Armada
P. 68

HISTÓRIAS DA BOTICA (16)




                                          O Verde
                                           O Verde






               á já muito tempo que sinto nos
               objectos e nos seres, alma e senti-
        Hmentos. Não sei bem explicar
         porquê, mas talvez seja porque ao longo da
         vida muitas vezes me senti só, ou apenas
         porque continuo sem reconhecer nobreza
         em muitos comportamentos humanos...
           De toda a forma, isso não é importante, o
         que é importante é que os lugares me dizem
         coisas. Sussurram-me, baixinho, palavras
         simples, mas cheias de conteúdo, que
         amiúde me fazem compreender a vida e
         achar calma, onde, de outra forma, só reina-
         ria a tempestade...
           Penso que não sou o único a sentir tais
         vibrações. Observei, muitas vezes já, as faces
         extasiadas de outros perante a beleza de uma
         paisagem, a imponência de uma velha casa,
         ou o contraste de um rochedo contra o azul
         do mar...Talvez nem todos o racionalizem,
         mas estou certo que todos são tocados pelo
         peso da terra, ou pelo azul do mar...
           De toda a criação, contudo, o Homem é –
         sei-o por certo – o ser mais estranho, pois
         destroi mesmo aquilo que precisa para viver.
         É ver, o caro leitor, o que tem acontecido na
         área da grande Lisboa, onde a Ganância -
         um monstro mítico, tão velho como a
         humanidade, descrito em todos os livros
         sagrados como temeroso, tem consumido a
         beleza física dos lugares e, com isso, rouba-
         do o sentir das pessoas...
           Ultimamente, constroem-se, a velocidades
         estonteantes, torres e mais torres, cada uma
         rivalizando com a anterior pelo tamanho -
         quais megatérios de um filme de terror.
         Vão–se, assim, cobrindo montes, destruindo
         bosques, descaracterizando ruas, outrora
         belas.
           Ainda que em esforço supremo, consigo
         até perceber a necessidade dos construtores,
         pessoas de origem humilde, que viram na
         especulação imobiliária – uma das poucas
         coisas em que o país se encontra no topo
         europeu - uma forma de conseguir ostentar
         os seus espadas alemães, sem o que não se
         sentem gente importante. Difícil, difícil  se encontram recantos puros. Nele ainda há  ses do Jet Set, que vivem num qualquer três
         mesmo, é compreender como os que vêm  areia, ainda se ouvem os pássaros e nalguns  assoalhadas, a que os donos e a má sorte os
         dirigindo o país, se têm rendido a esta lógica  sítios, privilegiados, ainda se sente o Tejo  condenaram...
         destrutiva, pequena e, na distância, muito  antigo, ainda se vêm bandos de flamingos....  E a espiral destrutiva continua, como no
         cara...                              Quem sobrevoar o espaço à volta desta  imaginário de um monstro ciclópico grego,
           Mas, dirá o leitor a esta altura, o que é que  ilha, verá que o betão impera e os espaços de  alimentado por almas puras, que na busca
         isto tem a ver com a Marinha?      lazer se resumem, quase sempre, às paragens  de um Eldorado imediato, vão encontrar
           Tem, caros leitores, porque há um local  dos autocarros. As ruas, deixaram de permitir  sofrimento à mercê do Ogre, que as iludiu...
         que se chama Alfeite. A sua existência tem  a circulação pedestre, quer pela muita  Ao contrário, noutros países da Europa
         salvo, das garras deste desenvolvimento, ata-  poluição, quer pelas armadilhas eficazes,  procuram-se restaurar casas velhas. Asse-
         balhoado e feio, um conjunto delicioso de  camufladas, deixadas por um qualquer  gurar espaços verdes. Manter o carácter dos
         bosques e alguns edifícios dignos. Nele ainda  Doberman, ou São Bernardo da moda, des-  lugares. No nosso, parece haver cada vez

         30 FEVEREIRO 2002 • REVISTA DA ARMADA
   63   64   65   66   67   68   69   70   71   72   73