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HISTÓRIAS DA BOTICA (16)
O Verde
O Verde
á já muito tempo que sinto nos
objectos e nos seres, alma e senti-
Hmentos. Não sei bem explicar
porquê, mas talvez seja porque ao longo da
vida muitas vezes me senti só, ou apenas
porque continuo sem reconhecer nobreza
em muitos comportamentos humanos...
De toda a forma, isso não é importante, o
que é importante é que os lugares me dizem
coisas. Sussurram-me, baixinho, palavras
simples, mas cheias de conteúdo, que
amiúde me fazem compreender a vida e
achar calma, onde, de outra forma, só reina-
ria a tempestade...
Penso que não sou o único a sentir tais
vibrações. Observei, muitas vezes já, as faces
extasiadas de outros perante a beleza de uma
paisagem, a imponência de uma velha casa,
ou o contraste de um rochedo contra o azul
do mar...Talvez nem todos o racionalizem,
mas estou certo que todos são tocados pelo
peso da terra, ou pelo azul do mar...
De toda a criação, contudo, o Homem é –
sei-o por certo – o ser mais estranho, pois
destroi mesmo aquilo que precisa para viver.
É ver, o caro leitor, o que tem acontecido na
área da grande Lisboa, onde a Ganância -
um monstro mítico, tão velho como a
humanidade, descrito em todos os livros
sagrados como temeroso, tem consumido a
beleza física dos lugares e, com isso, rouba-
do o sentir das pessoas...
Ultimamente, constroem-se, a velocidades
estonteantes, torres e mais torres, cada uma
rivalizando com a anterior pelo tamanho -
quais megatérios de um filme de terror.
Vão–se, assim, cobrindo montes, destruindo
bosques, descaracterizando ruas, outrora
belas.
Ainda que em esforço supremo, consigo
até perceber a necessidade dos construtores,
pessoas de origem humilde, que viram na
especulação imobiliária – uma das poucas
coisas em que o país se encontra no topo
europeu - uma forma de conseguir ostentar
os seus espadas alemães, sem o que não se
sentem gente importante. Difícil, difícil se encontram recantos puros. Nele ainda há ses do Jet Set, que vivem num qualquer três
mesmo, é compreender como os que vêm areia, ainda se ouvem os pássaros e nalguns assoalhadas, a que os donos e a má sorte os
dirigindo o país, se têm rendido a esta lógica sítios, privilegiados, ainda se sente o Tejo condenaram...
destrutiva, pequena e, na distância, muito antigo, ainda se vêm bandos de flamingos.... E a espiral destrutiva continua, como no
cara... Quem sobrevoar o espaço à volta desta imaginário de um monstro ciclópico grego,
Mas, dirá o leitor a esta altura, o que é que ilha, verá que o betão impera e os espaços de alimentado por almas puras, que na busca
isto tem a ver com a Marinha? lazer se resumem, quase sempre, às paragens de um Eldorado imediato, vão encontrar
Tem, caros leitores, porque há um local dos autocarros. As ruas, deixaram de permitir sofrimento à mercê do Ogre, que as iludiu...
que se chama Alfeite. A sua existência tem a circulação pedestre, quer pela muita Ao contrário, noutros países da Europa
salvo, das garras deste desenvolvimento, ata- poluição, quer pelas armadilhas eficazes, procuram-se restaurar casas velhas. Asse-
balhoado e feio, um conjunto delicioso de camufladas, deixadas por um qualquer gurar espaços verdes. Manter o carácter dos
bosques e alguns edifícios dignos. Nele ainda Doberman, ou São Bernardo da moda, des- lugares. No nosso, parece haver cada vez
30 FEVEREIRO 2002 • REVISTA DA ARMADA