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HISTÓRIAS DA BOTICA (31)
O cirurgião capilar e os dois irmãos
O cirurgião capilar e os dois irmãos
magine-se o leitor numa sala, sentado numa la o bom senso de um desses cirurgiões. O rão, e que até ele – “pela muita experiência
cadeira confortável. À sua frente tem um es- colega veio falar comigo. Precisava de ajuda nestas coisas” – sabia tratar-se de uma vulgar
Ipelho de grandes dimensões. Atrás de si um para resolver um caso bicudo. Tratava-se de infecção por fungos, comum entre a marinha-
calendário com uma loura voluptuosa, expondo um potencial, e grave, conflito que envolvia gem. Pretendia então, o digníssimo colega Ci-
– de forma atrevida – os seus argumentos…No dois irmãos, que prestavam serviço a bordo. rurgião Barbeiro, que eu convocasse o maru-
ar sente-se um perfume antigo, de uma loção Um deles, mais velho, era casado com uma jo das manchas, para a inspecção anual que
desconhecida, que se mistura com o aroma da bonita mulher. Então, de acordo com as in- se aproximava. Deveria, na minha observação
espuma, agarrada a um venerando pincel, que formações do cirurgião, um deles iria trair o clínica, valorizar as ditas mazelas, acentuan-
repousa, orgulhoso, num almofariz de água té- outro, roubando-lhe a esposa, por quem reve- do a potencial gravidade e contagiosidade da
pida. Ouve-se ainda, devagarinho, a sintonia laria um interesse socialmente pouco comum, situação. Mediante a chegada próxima à Base
desfocada de uma música Pop de sucesso, de numa relação entre cunhados... do Alfeite, deveria, também, aconselhar o dito
um tempo perdido, numa emissora que o leitor Sem grande interesse pelo assunto – que mais Marinheiro a trazer a mulher a bordo “com a
desconhece. Agora abra os olhos! - Não, não parecia uma novela de faca e de alguidar – quis desculpa de que seria ela quem aplicaria o tra-
está num qualquer filme de ficção, nem está interromper, bruscamente, a conversa com uma tamento”, e, como tal necessitaria de “porme-
perdido. Está, isso sim, na sala de operações frase seca: norizada” explicação médica?!
de um dos meus camaradas mais esquecidos -Olhe que essas coisas de amores e desaven- Confrontado com tão ardiloso plano, fiquei,
– O Cirurgião Capilar… ças estão fora da minha jurisdição! por princípio, desconfiado – afinal não é todos
Deixemo-nos de coisas, todos sabemos que Ao que ele calmamente retorquiu – O doutor os dias que nos propõem tais coisas. Meditei
na Marinha não há barbeiros. Temos, isso sim, não tá a perceber…Vamos ter que arranjar uma durante alguns dias e acabei por partilhar as mi-
artilheiros, manobras e até electricistas, que, ver- doençazita para resolver isto... nhas dúvidas com o Enfermeiro de bordo. Afi-
dadeiros artistas, se entregam com fervor à no- Pedi-lhe que me explicasse, de forma clara, o nal ele conhecia a guarnição melhor que eu. O
bre arte da Cirurgia Capilar. Conheci-os gordos que pretendia, pois estava absolutamente con- Sr. Enfermeiro tranquilizou-me quanto ao nosso
e magros, pequenos e grandes. Vi a sua actua- fuso. Amigo dos dois irmãos, o nosso barbeiro Barbeiro, que era segundo as suas próprias pala-
ção nos mais diversos meios, quer no balanço queria resolver a situação nas suas próprias pa- vras, “um homem ajuizado”…Confirmou tam-
dos navios, quer nos cantos que lhes são re- lavras “sem sangue”. Tinha até um plano. bém que corriam boatos que substanciavam a
servados nas grandes Unidades. Apreciei -lhes Acontece que o irmão casado padecia de história do Cirurgião Capilar, agora pretendente
o desvelo e mestria no mister de tratar os ca- manchas nas costas, de agravamento no Ve- a conselheiro matrimonial…
belos alheios…
Verifiquei que, quase todos, aproveitavam
o período de corte cirúrgico, para comentar
os males da vida – a deles e a dos outros. Re-
conheci-lhes a descrição, o conselho, o silên-
cio. Estou seguro que, a bordo, têm primordial
importância para a estabilidade psicológica
da guarnição…
Encontrei, a este propósito, uma velha seben-
ta, dos tempos de Faculdade, da Cadeira de His-
tória da Medicina. Voltei a ler sobre a Medicina
efectuada por Doutores de outros tempos, que
procuravam tra tar os seus doentes “com poções
e alquimia”. As coisas comezinhas do tipo ab-
cessos, fleimões, fracturas e quejandos eram
deixadas nas mãos dos barbeiros…Foi até um
barbeiro militar, no exército de Napoleão, que
desenvolveu a forma eficaz de tratar feridas de
guerra e deu início aquilo que hoje, moderna-
mente, chamamos Cirurgia…
Nada disto me surpreendeu. Considero os
barbeiros navais que conheço, em regra, mais
sensíveis, que muitos dos seus camaradas. Con-
sidero, ainda, que a Medicina é, antes de mais,
a arte do ouvir…O resto vem por acréscimo.
Acredito, por isto, que à sua maneira, e em de-
terminadas circunstâncias, fazem verdadeiros
“actos médicos”, no profundo sentir da expres-
são…Invejo-lhes o tempo e a disponibilidade
mental, o jeito e a arte…Das figuras navais típi-
cas, tenho-os entre os melhores.
Ora aconteceu um dia, estando nós a na-
vegar, ocorreu um acontecimento que reve-
30 JULHO 2003 U REVISTA DA ARMADA