Page 248 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS DA BOTICA (31)



             O cirurgião capilar e os dois irmãos
             O cirurgião capilar e os dois irmãos




            magine-se o leitor numa sala, sentado numa  la o bom senso de um desses cirurgiões. O  rão, e que até ele – “pela muita experiência
            cadeira confortável. À sua frente tem um es-  colega veio falar comigo. Precisava de ajuda  nestas coisas” – sabia tratar-se de uma vulgar
         Ipelho de grandes dimensões. Atrás de si um  para resolver um caso bicudo. Tratava-se de  infecção por fungos, comum entre a marinha-
         calendário com uma loura voluptuosa, expondo  um potencial, e grave, conflito que envolvia  gem. Pretendia então, o digníssimo colega Ci-
         – de forma atrevida – os seus argumentos…No  dois irmãos, que prestavam serviço a bordo.  rurgião Barbeiro, que eu convocasse o maru-
         ar sente-se um perfume antigo, de uma loção  Um deles, mais velho, era casado com uma  jo das manchas, para a inspecção anual que
         desconhecida, que se mistura com o aroma da  bonita mulher. Então, de acordo com as in-  se aproximava. Deveria, na minha observação
         espuma, agarrada a um venerando pincel, que  formações do cirurgião, um deles iria trair o  clínica, valorizar as ditas mazelas, acentuan-
         repousa, orgulhoso, num almofariz de água té-  outro, roubando-lhe a esposa, por quem reve-  do a potencial gravidade e contagiosidade da
         pida. Ouve-se ainda, devagarinho, a sintonia  laria um interesse socialmente pouco comum,  situação. Mediante a chegada próxima à Base
         desfocada de uma música Pop de sucesso, de  numa relação entre cunhados...  do Alfeite, deveria, também, aconselhar o dito
         um tempo perdido, numa emissora que o leitor   Sem grande interesse pelo assunto – que mais  Marinheiro a trazer a mulher a bordo “com a
         desconhece. Agora abra os olhos! - Não, não  parecia uma novela de faca e de alguidar – quis  desculpa de que seria ela quem aplicaria o tra-
         está num qualquer filme de ficção, nem está  interromper, bruscamente, a conversa com uma  tamento”, e, como tal necessitaria de “porme-
         perdido. Está, isso sim, na sala de operações  frase seca:            norizada” explicação médica?!
         de um dos meus camaradas mais esquecidos   -Olhe que essas coisas de amores e desaven-  Confrontado com tão ardiloso plano, fiquei,
         – O Cirurgião Capilar…             ças estão fora da minha jurisdição!  por princípio, desconfiado – afinal não é todos
           Deixemo-nos de coisas, todos sabemos que   Ao que ele calmamente retorquiu – O doutor  os dias que nos propõem tais coisas. Meditei
         na Marinha não há barbeiros. Temos, isso sim,  não tá a perceber…Vamos ter que arranjar uma  durante alguns dias e acabei por partilhar as mi-
         artilheiros, manobras e até electricistas, que, ver-  doençazita para resolver isto...  nhas dúvidas com o Enfermeiro de bordo. Afi-
         dadeiros artistas, se entregam com fervor à no-  Pedi-lhe que me explicasse, de forma clara, o  nal ele conhecia a guarnição melhor que eu. O
         bre arte da Cirurgia Capilar. Conheci-os gordos  que pretendia, pois estava absolutamente con-  Sr. Enfermeiro tranquilizou-me quanto ao nosso
         e magros, pequenos e grandes. Vi a sua actua-  fuso. Amigo dos dois irmãos, o nosso barbeiro  Barbeiro, que era segundo as suas próprias pala-
         ção nos mais diversos meios, quer no balanço  queria resolver a situação nas suas próprias pa-  vras, “um homem ajuizado”…Confirmou tam-
         dos navios, quer nos cantos que lhes são re-  lavras “sem sangue”. Tinha até um plano.   bém que corriam boatos que substanciavam a
         servados nas grandes Unidades. Apreciei -lhes   Acontece que o irmão casado padecia de  história do Cirurgião Capilar, agora pretendente
         o desvelo e mestria no mister de tratar os ca-  manchas nas costas, de agravamento no Ve-  a conselheiro matrimonial…
         belos alheios…
           Verifiquei que, quase todos, aproveitavam
         o período de corte cirúrgico, para comentar
         os males da vida – a deles e a dos outros. Re-
         conheci-lhes a descrição, o conselho, o silên-
         cio. Estou seguro que, a bordo, têm primordial
         importância para a estabilidade psicológica
         da guarnição…
           Encontrei, a este propósito, uma velha seben-
         ta, dos tempos de Faculdade, da Cadeira de His-
         tória da Medicina. Voltei a ler sobre a Medicina
         efectuada por Doutores de outros tempos, que
         procuravam tra tar os seus doentes “com poções
         e alquimia”. As coisas comezinhas do tipo ab-
         cessos, fleimões, fracturas e quejandos eram
         deixadas nas mãos dos barbeiros…Foi até um
         barbeiro militar, no exército de Napoleão, que
         desenvolveu a forma eficaz de tratar feridas de
         guerra e deu início aquilo que hoje, moderna-
         mente, chamamos Cirurgia…
           Nada disto me surpreendeu. Considero os
         barbeiros navais que conheço, em regra, mais
         sensíveis, que muitos dos seus camaradas. Con-
         sidero, ainda, que a Medicina é, antes de mais,
         a arte do ouvir…O resto vem por acréscimo.
         Acredito, por isto, que à sua maneira, e em de-
         terminadas circunstâncias, fazem verdadeiros
         “actos médicos”, no profundo sentir da expres-
         são…Invejo-lhes o tempo e a disponibilidade
         mental, o jeito e a arte…Das figuras navais típi-
         cas, tenho-os entre os melhores.
           Ora aconteceu um dia, estando nós a na-
         vegar, ocorreu um acontecimento que reve-

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