Page 320 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS DA BOTICA (32)



               O Papagaio de Papel entre
               O Papagaio de Papel entre



                                   o mar e o céu...
                                   o mar e o céu...




             lugar comum afirmar-se que cada homem   Após cerca de uma hora, com maior ou me-  ticular um Marinheiro, de olhar claro e calmo,
             tem uma criança dentro de si. Um outro  nor dificuldade, restavam cinco papagaios – al-  oriundo da cidade da Guarda...
         É  lugar de comum é o de que os militares  guns repescados e retocados - que sobreviveram   Mesmo a restante competição acedeu, sem
         são pessoas sem grandes sentimentos, rudes e,  ao teste de voo e iam lá no alto. Até que, por  discussão, ao indesmentível facto de que aque-
         muitas vezes, psicologicamente violentos, ou,  fim, chegou um de forma octogonal, que logo  le era o melhor em todos os itens...A claque es-
         se quisermos, simplesmente insensíveis. Ora eu,  chamou a atenção dos classificadores. Era enor-  tava agora, subitamente silenciosa e os poucos
         hoje e agora, venho contradizer tudo isto com  me e tinha uma engenhosa estrutura, produzi-  sons que se ouviam eram de pasmo...Ganhou
         um papagaio de papel...Um papagaio de papel,  da em verdadeiro alumínio. Sobretudo voava,  e ganhou bem.
         como todos sabemos, é apenas um brinquedo  voava como o verdadeiro animal que lhe dá o   Ficou preso à balaustrada de bombordo e,
         de criança, mas pode ser muito mais....pode  nome. Os artistas eram os cozinheiros, em par-  passadas algumas horas, parecia indissociável
         ser a representação do sonho que cada ho-
         mem tem de libertação, duma existência ter-
         restre, sem emoção....
           Aconteceu que, há algum tempo, em determi-
         nado navio que atravessava o Atlântico, se deci-
         diu, fazer um concurso de papagaios de papel,
         para cortar a monotonia da viagem e algum de-
         sencanto pelo esforço de navegação continua-
         da, a que se sujeitara a guarnição nos últimos
         6 meses. A ideia tinha partido do Imediato, um
         homem criativo, afável e respeitado por todos. A
         princípio não acreditei que resultaria: isto de ho-
         mens adultos irem “brincar”, no meio do Atlân-
         tico, com papagaios de papel, parecia-me estra-
         nho, inverosímil...
           Mas estava errado. Formaram-se rapidamen-
         te grupos, geralmente por Serviços, iniciando-se
         a construção do papagaio dos electricistas, dos
         manobras, dos artilheiros e por aí adiante...Como
         o Serviço de Saúde não ia concorrer, por declara-
         da falta de jeito do seu chefe e porque os outros
         oficiais poderiam ser acusados de parcialidade,
         ao julgarem os artefactos voadores dos seus mais
         directos subordinados, acabei presidente do Júri
         de tão inovador concurso.
           Quanto aos papagaios, começaram a surgir de
         todas as formas, tamanhos e cores. Alguns tinham
         a forma clássica, triangular com uma comprida
         cauda. Outros tinham estruturas mais elaboradas,
         com formas inovadoras, em estrela, em hexágono,
         ou em octógono. Contudo, se bem que a origi-
         nalidade fosse importante, o principal critério de
         classificação – havia sido superiormente determi-
         nado – era a simples capacidade para voar...Neste
         critério, tinham alguns construtores – assim pude
         perceber mais tarde- descurado a aerodinâmica.
           Deste modo, no dia aprazado para o concur-
         so, algumas entidades pretendentes a voadoras,
         ao deixarem a rampa de lançamento, improvisa-
         da na tolda e apesar dos ventos favoráveis, iam,
         quais pelicanos em voo picado, mergulhar no
         azul - violeta daquele mar... Cada papagaio que
         era largado (quer voasse, ou não...) era brindado
         por uma claque galhofeira, que muito contribuía
         para o clima de alegria, envolvente e prazentei-
         ro, na melhor tradição naval...

         30  SETEMBRO/OUTUBRO 2003 U REVISTA DA ARMADA
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