Page 81 - Revista da Armada
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Colégio Militar foi fundado em 1803 dentro de um hoje em dia passam-se anos que não entra na Escola
quartel onde estava alojado o Regimento de Naval um aluno vindo do Colégio Militar. Um facto que,
OArtilharia da Corte e da Armada, num momento de de maneira nenhuma, estava presente à data da fundação,
especial conturbação política e militar para o país, pouco em 1803. Mas não quer isto dizer que os valores éticos
tempo depois de uma guerra com Espanha e a meia dúzia presentes na educação dos alunos do Colégio Militar não
de anos das invasões napoleónicas. Todavia, é também o sejam exactamente os mesmos que devem nortear a acção
momento da vontade de estruturação escolar do país, do de qualquer marinheiro. A sua universalidade ultrapassa
sentimento generalizado (dentro das elites intelectuais) da os limites de qualquer instituição militar, e podem ser
necessidade de organizar o ensino e desenvolver uma for- assumidos como a base da melhor formação para a
mação equilibrada que devia começar nos mais tenros cidadania, encarada com a seriedade que este conceito
anos da juventude e devia prosseguir até à idade adulta. merece. O Colégio Militar produziu gente que se distin-
Não duvido da generosa e esclarecida mente do então guiu em todos os ramos de actividade. Dali saíram
coronel Teixeira Rebelo, que se lembrou de fazer uma notáveis engenheiros, arquitectos, médicos e investiga-
escola para educar os filhos dos oficiais do seu regimento, dores de todo o tipo e – hoje podemos dizê-lo com grande
alguns deles afastados em campanhas externas, nomeada- verdade – pensadores que marcaram o século XX por-
mente embarcados em navios. Teixeira Rebelo é pois o pai tuguês. Quando andava no meu 3º ano – decorria o ano
do Colégio Militar que se perpetuou por duzentos anos, de 1967 – era meu professor de Português uma figura de
mas é pretensão exagerada pensar que foi o pai de uma elite, a quem presto a minha homenagem, e a quem
ideia inovadora. Se essa ideia tem alguma paternidade agradeço muito do que sou. Trata-se do Dr. Dias Miguel
efectiva, ela está na filosofia das luzes em geral e, especial- que infelizmente nunca mais voltei a ver. Recordo-me que
mente, em Jean Jacques Rousseau. Também me permito numa das suas aulas – vindo à conversa o próprio Colégio
duvidar das afirmações apressadas que ligam a sua fun- Militar – expressou o seguinte pensamento: (cito de cor,
dação ao Exército – enquanto ramo das Forças Armadas umas dezenas de anos depois) “o Colégio tem produzido
definido como o conhecemos hoje – na medida em que os homens de acção, capazes de obras concretas, com
oficiais do Regimento de Artilharia da Corte, tanto ser- decisão rápida e eficaz, sejam eles militares ou civis, mas
viam o Exército como a Marinha. Mas é importante reco- não consegue produzir grandes pensadores, pessoas que
nhecer que as circunstâncias vividas pelo país nos anos possam reflectir sobre uma natureza profunda do Ser
que se seguiram, o empurraram definitivamente para o Humano ou da sociedade. E logo que acabou de dizer
Exército. Mas se me refiro a isto não é para criar nenhum isto, teve um pensativo silêncio, concluindo com o
litígio especial, que hoje não tem nenhum sentido. Apenas seguinte: “há uma excepção” – e continuou, depois de
quero salientar como o Colégio acompanhou a evolução uma pausa – “uma excepção tão importante que, se me
dos tempos, transformando-se com as circunstâncias do tivesse lembrado dela, nunca teria dito o que disse”. Per-
próprio país e da Europa em geral, quer nos seus objec- guntámos-lhe quem era, mas ele não respondeu.
tivos, quer nos valores subjacentes, quer nos processos Imaginei, passados anos que seria António Sérgio, um
educativos. Aliás, de outra forma não poderia ter sobre- notável intelectual que marcou o século XX português, ex-
vivido dois séculos. O Colégio Militar adaptou-se e fê-lo -aluno do Colégio Militar e, curiosamente, antigo Oficial
com muita sabedoria como o mostram as diversas refor- de Marinha. Hoje, as excepções do Dr. Dias Miguel já se
mas que sofreu, algumas delas bastante bem fundamen- poderiam estender a muitos outros. Lembro pela noto-
tadas em teorias educativas que, no seu tempo, consti- riedade que tem a figura de Eduardo Lourenço, cuja
tuíam o que de mais inovador e moderno havia. Todavia, lucidez mental, nos deslumbra há dezenas de anos, e
manteve sempre uma vocação para a formação de futuros poderia citar muitos outros. A educação colegial é, natu-
quadros das Forças Armadas, com um especial relevo ralmente, direccionada numa perspectiva militar, mas a
para o Exército, o que se compreende pelo papel domi- coragem o carácter e a independência de pensamento
nante que este teve na História de Portugal ao longo do também criaram gente que lutou contra ventos e marés,
século XIX e XX. Mas eu julgo que a viragem decisiva que trazendo à democracia portuguesa a capacidade de ino-
vem a afastar o Colégio da Marinha é a reforma sofrida vação e o sentido de liberdade de que se alimenta.
em 1944 (que com algumas excepções ainda está em No grito de exortação colectiva dos alunos do Colégio
vigor). No relatório que antecede essa reforma diz-se Militar – o conhecido Zacatraz – está lá um “ala, ala, ar-
claramente: “Eis porque entende [o Governo] orientar riba”, e isto é algo que todos os marinheiros entendem
desde a infância o escol que há-de constituir os futuros bem: ala, ala... alemos todos de “leva arriba”, alemos
chefes do exército, adaptando a esta finalidade o Colégio todos ao mesmo tempo, até que a adriça, a ostaga, ou seja
Militar e a Escola do Exército”. E depois, na redacção do o que for, chegue ao tope. Esta imagem de esforço comum
próprio decreto (art. 1º), afirma o seguinte: “O Colégio e solidário da faina do mar ficou por muitas terras ribei-
Militar é um estabelecimento de educação e ensino, desti- rinhas portuguesas como lema de pescadores, presente
nado à preparação, em regime de internato, para a fre- em clubes recreativos diversos e mesmo em símbolos
quência posterior da Escola do Exército”. Esta situação heráldicos municipais. Alemos todos a adriça da vida
marca bem o afastamento quase natural que o Colégio foi para que a vela suba e, depois de caçada a preceito, nos
tendo em relação à Armada, em termos institucionais, conduza no melhor caminho. É esta a imagem que se
mesmo considerando o facto de muitos dos seus alunos inscreve no “ala, ala, arriba”, gritado por todos, como se
terem vindo frequentar a Escola Naval e terem sido bri- fosse um apito de mestre, a incentivá-los numa faina em
lhantes Oficiais da Marinha, como é sabido. Porém, que ninguém fraqueja. É esta a essência do Colégio
mesmo esses reconhecerão que se entra num momento Militar.
em que os cursos da Escola do Exército eram constituídos
por quase metade de ex-alunos do Colégio Militar, e que a J. Semedo de Matos
motivação para aceder à Escola Naval não era a mesma. CFR FZ
Este afastamento foi – na minha maneira de ver – fatal, e
REVISTA DA ARMADA • MARÇO 2003 7