Page 248 - Revista da Armada
P. 248
DIVAGAÇÕES DE UM MARUJO (7)
Marte ataca
Marte ataca
ui há dias surpreendido com a notícia de Tudo começou quando uma vizinha, em tudo completamente paralisado. Enquanto ou-
que o território nacional tinha sido sobre- grande alvoroço, me entrou pela casa dentro via, aterrado, tais notícias, só perguntava a mim
Fvoado por um objecto voador não identi- e, aos gritos, pediu à minha mãe que ligasse o próprio se os extraterrestres – sim, só podiam ser
ficado. O que causa espanto não é a notícia em rádio. O choque foi imediato: com a voz cla- – se lembrariam de atacar também o meu pe-
si mas o facto do tema voltar à ribalta mediática ramente marcada pela excitação, um repórter queno e periférico bairro, onde as pessoas, em
após quase vinte anos de esquecimento. de exteriores relatava o avistamento de objec- grande burburinho, começavam a juntar-se na
É sobejamente sabido rua para discutir a alar-
que Portugal despertou mante situação.
um pouco tarde para o É então que, no meio
fenómeno ovniológico, do pânico geral, um dos
pois a “febre” dos discos meus vizinhos, brioso
voadores que assolou o militar da Marinha de
mundo ocidental nos Guerra, toma uma dra-
anos 50 e 60 do século mática decisão: dirige-
transacto passou quase se a casa a passos largos
completamente ao lado e… começa a fardar-se
do nosso feliz e inocente para se ir apresentar ao
provincianismo. Só em serviço. Se Portugal es-
finais da década de 70, tava a ser atacado por
após a euforia revolu- um inimigo, extrater-
cionária que nos fizera restre ou lá o que fos-
desprezar todas as for- se, ele iria cumprir o
mas de “propaganda seu dever e integrar a
ianque”, o nosso bom força de combate aos
povo começou a reve- invasores!
lar algum interesse pelo Entretanto, no rádio,
contacto com formas a ligação ao repórter
de vida alienígena. Na- de exteriores fora su-
turalmente a tal fenóme- bitamente cortada e,
no não foram alheios os da redacção, o apre-
primeiros resultados das sentador do noticiário
missões Pioneer, Viking tentava desesperada-
e Voyager, nem acções mente restabelecer o
de divulgação como os contacto, chamando-
livros e programas tele- o em altos berros. Por
visivos desse grande co- breves - mas angustio-
municador que foi o Dr. sos –instantes retive-
Carl Sagan. Lembro-me mos a respiração… Foi
que, na altura, a série então que uma música
Cosmos se tornou um de fundo se fez ouvir
verdadeiro campeão de e a voz calma de ou-
audiências (é verdade, tro locutor anunciou
estamos a falar de uma o final daquilo que não
produção de divulgação passara de mais um
científica! Claro que isto folhetim radiofónico.
se passou antes das esta- Olhámos uns para os
ções de televisão come- outros completamente
çarem a tratar as audiên- embasbacados e, sus-
cias como um bando de pirando de alívio, rom-
atrasados mentais, servindo-lhes doses maciças tos voadores em forma de charuto a largar uns pemos em estrondosas gargalhadas. Tínhamos
de Big Brother e de telenovelas). estranhos balões verdes que, ao chegar ao solo, caído na esparrela que nem patos mansos!
E foi neste contexto que, em meados de rebentavam e deixavam completamente para- Claro está que o meu vizinho marinheiro
1982, este vosso camarada – na altura ainda lisadas todas as formas de vida animal. A re- não chegou a acabar de se fardar. Poderia mui-
um catraio – assistiu à reedição - em muito portagem era feita a partir da Linha de Cascais, to bem adiantar mais pormenores sobre a sua
menor escala, é certo – da onda de pânico mas à redacção chegavam, já, notícias de no- identidade (posto, especialidade, etc.) não fora
que varrera os Estados Unidos cerca de cin- vos avistamentos um pouco por todo o país. E o nosso já proverbial espírito trocista, que não
quenta anos antes (se isto não é atraso, não o relato prosseguia: esquivando-se aos balões hesitaria em ridicularizar o seu dedicado e de-
sei o que o será!), aquando da emissão radio- que não paravam de cair, o repórter fazia uma cidido exemplo. Quanto a mim, posso garantir
fónica, pela voz de Orson Weles, do romance descrição emocionada do panorama desolador que enquanto colávamos os ouvidos ao recep-
“A Guerra dos Mundos”. que o rodeava – gatos, cães, turistas, transeuntes, tor, totalmente suspensos da emissão, nenhum
30 JULHO 2004 U REVISTA DA ARMADA