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DIVAGAÇÕES DE UM MARUJO (7)



                          Marte ataca
                          Marte ataca




             ui há dias surpreendido com a notícia de   Tudo começou quando uma vizinha, em  tudo completamente paralisado. Enquanto ou-
             que o território nacional tinha sido sobre-  grande alvoroço, me entrou pela casa dentro  via, aterrado, tais notícias, só perguntava a mim
         Fvoado por um objecto voador não identi-  e, aos gritos, pediu à minha mãe que ligasse o  próprio se os extraterrestres – sim, só podiam ser
         ficado. O que causa espanto não é a notícia em  rádio. O choque foi imediato: com a voz cla-  – se lembrariam de atacar também o meu pe-
         si mas o facto do tema voltar à ribalta mediática  ramente marcada pela excitação, um repórter  queno e periférico bairro, onde as pessoas, em
         após quase vinte anos de esquecimento.  de exteriores relatava o avistamento de objec-  grande burburinho, começavam a juntar-se na
           É sobejamente sabido                                                                rua para discutir a alar-
         que Portugal despertou                                                                mante situação.
         um pouco tarde para o                                                                   É então que, no meio
         fenómeno ovniológico,                                                                 do pânico geral, um dos
         pois a “febre” dos discos                                                             meus vizinhos, brioso
         voadores que assolou o                                                                militar da Marinha de
         mundo ocidental nos                                                                   Guerra, toma uma dra-
         anos 50 e 60 do século                                                                mática decisão: dirige-
         transacto passou quase                                                                se a casa a passos largos
         completamente ao lado                                                                 e… começa a fardar-se
         do nosso feliz e inocente                                                             para se ir apresentar ao
         provincianismo. Só em                                                                 serviço. Se Portugal es-
         finais da década de 70,                                                                tava a ser atacado por
         após a euforia revolu-                                                                um inimigo, extrater-
         cionária que nos fizera                                                                restre ou lá o que fos-
         desprezar todas as for-                                                               se, ele iria cumprir o
         mas de “propaganda                                                                    seu dever e integrar a
         ianque”, o nosso bom                                                                  força de combate aos
         povo começou a reve-                                                                  invasores!
         lar algum interesse pelo                                                                Entretanto, no rádio,
         contacto com formas                                                                   a ligação ao repórter
         de vida alienígena. Na-                                                               de exteriores fora su-
         turalmente a tal fenóme-                                                              bitamente cortada e,
         no não foram alheios os                                                               da redacção, o apre-
         primeiros resultados das                                                              sentador do noticiário
         missões Pioneer, Viking                                                               tentava desesperada-
         e Voyager, nem acções                                                                 mente restabelecer o
         de divulgação como os                                                                 contacto, chamando-
         livros e programas tele-                                                              o em altos berros. Por
         visivos desse grande co-                                                              breves - mas angustio-
         municador que foi o Dr.                                                               sos –instantes retive-
         Carl Sagan. Lembro-me                                                                 mos a respiração… Foi
         que, na altura, a série                                                               então que uma música
         Cosmos se tornou um                                                                   de fundo se fez ouvir
         verdadeiro campeão de                                                                 e a voz calma de ou-
         audiências (é verdade,                                                                tro locutor anunciou
         estamos a falar de uma                                                                o final daquilo que não
         produção de divulgação                                                                passara de mais um
         científica! Claro que isto                                                             folhetim radiofónico.
         se passou antes das esta-                                                             Olhámos uns para os
         ções de televisão come-                                                               outros completamente
         çarem a tratar as audiên-                                                             embasbacados e, sus-
         cias como um bando de                                                                 pirando de alívio, rom-
         atrasados mentais, servindo-lhes doses maciças  tos voadores em forma de charuto a largar uns  pemos em estrondosas gargalhadas. Tínhamos
         de Big Brother e de telenovelas).  estranhos balões verdes que, ao chegar ao solo,  caído na esparrela que nem patos mansos!
           E foi neste contexto que, em meados de  rebentavam e deixavam completamente para-  Claro está que o meu vizinho marinheiro
         1982, este vosso camarada – na altura ainda  lisadas todas as formas de vida animal. A re-  não chegou a acabar de se fardar. Poderia mui-
         um catraio – assistiu à reedição - em muito  portagem era feita a partir da Linha de Cascais,  to bem adiantar mais pormenores sobre a sua
         menor escala, é certo – da onda de pânico  mas à redacção chegavam, já, notícias de no-  identidade (posto, especialidade, etc.) não fora
         que varrera os Estados Unidos cerca de cin-  vos avistamentos um pouco por todo o país. E  o nosso já proverbial espírito trocista, que não
         quenta anos antes (se isto não é atraso, não  o relato prosseguia: esquivando-se aos balões  hesitaria em ridicularizar o seu dedicado e de-
         sei o que o será!), aquando da emissão radio-  que não paravam de cair, o repórter fazia uma  cidido exemplo. Quanto a mim, posso garantir
         fónica, pela voz de Orson Weles, do romance  descrição emocionada do panorama desolador  que enquanto colávamos os ouvidos ao recep-
         “A Guerra dos Mundos”.             que o rodeava – gatos, cães, turistas, transeuntes,  tor, totalmente suspensos da emissão, nenhum

         30  JULHO 2004 U REVISTA DA ARMADA
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