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DIVAGAÇÕES DE UM MARUJO (8)



                                     Tatanka
                                     Tatanka




             oucas coisas me irritam mais do que  o que é cumprir uma missão de seis meses  sobre um paiol de munições “à cunha”, cas-
             ouvir alguns camaradas mais antigos  nos trópicos sem ver o dito ar condiciona-  tigado pelo Sol a pique, começa a fumegar e
         Pdizer que eu pertenço à “Marinha do  do a funcionar, embora, oficialmente, ele  tem de ser “regado”, de quarto em quarto de
         ar condicionado”. Nada mais injusto! É que  lá estivesse! E sei o que é, debaixo daquele  hora, pelas mangueiras de incêndio.
         não obstante o privilégio de ter, já, navega-  calor infernal, navegar em regime de água   E eis que, ao evocar estes factos, uma
         do nas unidades navais mais recentes, gran-  fechada e só ao fim de quinze dias ter di-  palavra emerge, sem aviso, no meu espí-
         de parte da minha vida de mar – até à data,  reito a uma garrafinha de água doce para  rito: tatanka!
         bem entendido! - foi passada a bordo dos  tomar um banho completo! Já nem falo da   Não sei se todos os meus cinéfilos leitores
         mesmos navios onde eles serviram há vin-  sensação de viver em cima de um barril de  se lembrarão de um filme, um western da
         te ou trinta anos. Ah, pois! Sei muito bem  pólvora flutuante quando o convés metálico  nova geração, que há cerca de quinze anos
                                                                                     fez sucesso nas bilheteiras (e tam-
                                                                                     bém na Academia de Hollywood,
                                                                                     pois foi considerado o melhor do
                                                                                     ano): “Danças com Lobos”. Pois
                                                                                     numa das mais famosas cenas
                                                                                     dessa película o herói da história
                                                                                     tenta avisar os seus novos amigos
                                                                                     índios da descoberta de uma ma-
                                                                                     nada de búfalos. Após várias tenta-
                                                                                     tivas de mímica desesperada, que
                                                                                     incluíam mugidos e dedos em ris-
                                                                                     te sobre a testa, o chefe da tribo lá
                                                                                     compreende a mensagem e excla-
                                                                                     ma “tatanka!”, que logo os espec-
                                                                                     tadores entendem ser a designação
                                                                                     sioux para búfalo. A verdade é que,
                                                                                     durante uns tempos, a palavra caiu
                                                                                     no goto nacional e passou a figu-
                                                                                     rar no léxico português como sinó-
                                                                                     nimo de “bruto”, “troglodita”, “tri-
                                                                                     bal”, “primitivo”, enfim, de tudo o
                                                                                     que sugerisse os pesados movimen-
                                                                                     tos dos bois da pradaria.
                                                                                       Ora, justamente por essa altura
                                                                                     fiz parte da equipa da Escola Na-
                                                                                     val que disputou a prova de canoa-
                                                                                     gem conhecida como “Maratona do
                                                                                     Tejo”, cujo percurso se iniciava em
                                                                                     Vila Velha de Ródão e terminava em
                                                                                     Lisboa, no cais das colunas (ainda
                                                                                     este não estava soterrado pelo en-
                                                                                     tulho das obras do metropolitano!).
                                                                                     Não surpreenderei ninguém, estou
                                                                                     certo, se afirmar que os meios com
                                                                                     que participámos na competição es-
                                                                                     tavam à altura da provecta idade da
                                                                                     nossa Esquadra. De facto, as nos-
                                                                                     sas canoas “dos índios” eram tão
                                                                                     lentas e pesadas que foi logo ponto
                                                                                     assente não estarmos em condições
                                                                                     de lutar por um lugar no podium.
                                                                                     O mais duro, porém, era ver os ve-
                                                                                     lozes K-1, K-2 e outras embarca-
                                                                                     ções similares passarem por nós a
                                                                                     alta velocidade, enquanto os seus
                                                                                     tripulantes exclamavam, trocistas:
                                                                                     “tatanka!”, “tatanka!”.
                                                                                       Mas diz o Povo, na sua milenar sa-
                                                                                     bedoria, que “Deus escreve direito
                                                                                     por linhas tortas”, e a primeira pro-

         30  SETEMBRO/OUTUBRO 2004 U REVISTA DA ARMADA
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