Page 104 - Revista da Armada
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DIVAGAÇÕES DE UM MARUJO (10)
Ai, Timor…
Ai, Timor…
firmei, há pouco tempo, que era altura são, assistimos ao horroroso massacre da já tão lerado certos abusos que as primeiras vagas de
das velhas glórias da nossa Esquadra martirizada população timorense às mãos das tropas australianas, com os escrúpulos de não
Adarem lugar aos novos… Disse-o e criminosas milícias pró-indonésias, enquanto hostilizarem abertamente o seu vizinho indo-
volto a dizê-lo. Não pude, porém, evitar sen- a chamada Comunidade Internacional, sempre nésio, ainda deixaram passar. Reconheço, por
tir alguma mágoa ao tomar, há pouco tempo, tão pronta a intervir quando há interesses mate- outro lado, que assim se pode ter evitado um
conhecimento do desarmamento do navio riais em jogo, “assobiava para o ar” e fingia que maior derramamento de sangue, embora este
onde cumpri a minha última – perdão, a mi- nada se passava. Só o povo português, na sua já não fosse, seguramente, timorense.
nha mais recente – comissão de embarque, o característica espontaneidade que tanto pode Só a “Vasco da Gama” seria autorizada a
NRP “Coman dante Hermenegildo Capelo”. degenerar em cobardes linchamentos como na partir, dali a poucas semanas, para uma sim-
É verdade que nunca ouvi dizer bem das heróica defesa das mais nobres causas, reagiu, bólica – mas importante - presença na Força In-
fragatas daquela classe: ternacional. O seu excelen-
desde os seus tortuosos e te trabalho foi devidamente
labirínticos interiores, pas- noticiado e, mais importan-
sando pela pouco prática te do que tudo o resto, reco-
– embora elegante – con- nhecido. A “Capelo” rece-
cepção francesa que torna- beria ordens para rendê-la
va extremamente descon- passados alguns meses.
fortável – dir-se-ia, mesmo, Fá-lo-ia, porém, no âmbito
penoso – nelas navegar de- de uma iniciativa nacional,
baixo de mau tempo, até, sem se integrar no contin-
por fim, nos dias de hoje, à gente das Nações Unidas.
obsolescência do seu arma- Assim, sem ter deslustrado
mento e do seu equipamen- o desempenho da sua ante-
to, verdadeiras relíquias do cessora e tendo-se sujeitado
tempo do “fogo à peça”. a trabalhos semelhantes,
Têm, no entanto, atrás de acabou por ser alvo de me-
si, uma longa história de nor reconhecimento. A face
valiosos serviços prestados mais visível desta discrimi-
à Marinha e a Portugal: pri- nação foi a não atribuição
meiro em África, nas guer- à sua guarnição de uma
ras do Ultramar, onde a sua medalha comemorativa da
artilharia de 100 milímetros missão, embora tenham
ainda impunha bastante surgido outras “subtilezas”,
respeito; depois cruzando o das quais descreverei ape-
imenso Atlântico, navegan- nas uma ínfima parte.
do nos traiçoeiros fiordes ou Sobre a missão em si
enfrentando o tempestuoso pouco tenho a acrescentar
Mar do Norte, enquanto ga- ao que já foi dito. Se, po-
rantiam a continuidade da rém, ainda houver quem se
presença naval portuguesa na NATO; e, por indignado a toda aquela hipocrisia e através de atreva, por força de algum motivo que eu des-
fim, nas intermináveis e desgastantes patrulhas singelas, mas sentidas, manifestações fez o seu conheça (e que outro mais maldoso poderia
do Adriático, fazendo cumprir o embargo im- grito de revolta ecoar no mundo inteiro, levan- designar por “dor-de-cotovelo”), a desdenhar
posto pelas Nações Unidas às repúblicas da do, finalmente, os líderes das grandes potên- dos camaradas que nela tomaram parte, devo
Sérvia e do Montenegro. Pelo meio ficavam cias a tomar uma atitude. – além de referir que não foi por iniciativa nossa
incontáveis salvamentos no mar, levados a Naqueles momentos de angústia também que passámos seis meses longe da família em
cabo em duríssimas condições a que só a sua a Marinha disse “presente!” e antes que condições, no mínimo, pouco confortáveis - re-
robustez – é verdade, tinham, ao menos, essa qualquer decisão política viesse a lume já comendar-lhe a leitura das últimas “Crónica[s]
qualidade! – poderia dar resposta. Diminuido se aprontavam duas fragatas para serem en- de Timor” publicadas na Revista da Armada
que é o seu valor militar, vêmo-las, agora, nos viadas ao outro lado do Planeta: a sempre durante o já longínquo ano 2000, onde se
exercícios, na mais modesta mas não menos nova “Vasco da Gama” e a nossa venerável descreve minuciosamente todo o trabalho rea-
importante missão de dar treino às futuras e “Capelo”. Durante três afanosos dias a mari- lizado. De facto, não fomos a Timor “construir
actuais guarnições das unidades navais mais nhagem esfalfou-se até desoras para atestar escolas e hospitais”, embora, tal como no caso
modernas e, de resto, muito melhor equipadas, os navios de combustível, água e munições, dos nossos antepassados de Quatrocentos e de
onde muitas vezes não se tem consciência do sem esquecer os esforços para concluir as tão Quinhentos, que não eram propriamente cons-
“golpe de rins” que é necessário desferir para necessárias reparações de última hora (e que trutores de padrões, não tenha ficado mal dei-
manter aquele vetusto material a funcionar e bem que a cadeia logística funcionou dessa xarmos uma modesta, mas significativa, marca
evitar ficar demasiado “para trás”. vez, fornecendo-nos, em poucas horas, os naquelas remotas paragens. Várias foram as ta-
Na velha “Capelo” tive, porém, a honra de tão desejados sobressalentes!). refas levadas a cabo, das quais a presença naval
cumprir aquela que foi, sem dúvida, a sua úl- Infelizmente foi negado às Forças Armadas ali exercida não foi, decerto, a menos impor-
tima grande missão: a ida a Timor. Portuguesas a honra – que por direito lhes per- tante. Basta imaginar o conforto que a visão da
Jamais poderei esquecer aquele angustiante tencia! – de serem as primeiras a pisar o solo de sagrada – e para os timorenses é mesmo esse o
mês de Setembro de 1999, em que, pela televi- Timor. Estou certo de que estas não teriam to- termo - bandeira verde-rubra, a flutuar, ao lar-
30 MARÇO 2005 U REVISTA DA ARMADA