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HISTÓRIAS DA BOTICA (42)
A herança do David do Mel
A herança do David do Mel
“…Enquanto João Sem Medo, desfeito desenhou um barquito com três velas de igre- lhos e na mulher sempre que estava bêbado e
em fonte, corria nas areias do deserto as ja, com a chama incandescente acesa, por um que, também, por beber, não segurava empre-
fadas reunidas em Assembleia Geral (…) amarelo esbatido, que sobressaía no acinzen- go regular…
deliberavam e discutiam o destino a dar ao tado do papel almaço. Eram essas as velas que Quando acabou a escola primária separámo-
rapaz. Uma – a Fada da Má Catadura – não conhecia…na verdade, nunca tinha visto o mar, -nos até ao presente encontro. Eu fui continuar
reprimia o desejo de eternizá-lo em fonte, a nem qualquer tipo de embarcação. os estudos para a cidade e dele só tive notícias
quando era estudante no Hospital de Santa Ma-
Fora da escola, era também o meu compa-
jorrar água pelos tempos fora. (…) E por fim, nheiro de brincadeira, já que ao contrário dos ria. Encontrei lá o irmão, após uma tentativa de
a Fada com Lume na Bola, ouvidos mil dis- constrangimentos que a minha mãe me impu- suicídio, aos 19 anos – pareceu-me então muito
parates e inumeráveis hipóteses absurdas, nha, para ele não havia tempo. Eram tardes sem velho e triste. Perguntei-lhe pelo David, um ano
ergueu-se e perorou assim, de dedo no ar: fim, do ramo de visco, das zarelhas, dos verde- mais novo, foi quando soube que estava na Ma-
- Camaradas: não macemos mais esse des- lhões e dos pintassilgos. Do banho às escondi- rinha. Estranhamente, não soube mais dele até
graçado. Já lhe pregámos moral em dema- das, na poça argilosa das barreiras, agora tão pe- à manhã em que nos encontrámos…
sia e o sujeitámos a incríveis provas de mau quena, mas antes tão grande e medonha…Eram Interrompi o afluxo rápido de memórias,
gosto e tormento. Acabemos com a perse- dias em que, descaradamente, urinávamos para que quase me sufocava, quando ele entrou
guição mais inútil do que odiosa e deixe- cima dos agriões da velha, que nos atiçava um no meu gabinete, aí, em privado, saudou-me
mo-lo para sempre em paz… mastim feroz sempre que, a sorrir, lhe pedíamos com um sóbrio Dr. Luís Carlos. – A conjuga-
laranjas do seu pomar e ela, num esgar violento, ção do título com o nome pelo qual era co-
In Aventuras de João Sem Medo, as negava. Cheguei a ter inveja dele, pela vida nhecido na infância teve um toque agridoce,
de José Gomes Ferreira livre que levava, até aquele dia em que, perto de uma saudação já esquecida. Disse-me que
da sua casa, o pai, bêbado, o recebeu com uma seguia a minha carreira, a qual, dizia com ar
ncontrámo-nos por mero acaso, no atare- violenta paulada nas costas e um chorrilho de sério – “é de muito sucesso” – e que sabia das
fado corredor do Centro de Medicina Na- palavrões, sem nexo. Tínhamos 9 anos, se me minhas histórias. Gracejando, com a mais pura
Eval, no Alfeite. Nunca me esqueci dele, o não falha a memória…Do pequeno David, nem verdade, agradeci-lhe e a sorrir, respondi-lhe
meu primeiro e grande amigo de infância – o um ai, nem uma lágrima…só o seu olhar triste que não esperava grande carreira pois sou,
filho do David do Mel. Mantém o ar decidido me ficou na memó-
e uma certa compostura sóbria e digna, que ria, como se de um
sempre lhe reconheci…Houve algum silêncio ritual macabro, re-
no olhar dele, afinal há 30 anos que não nos petido e previsível,
víamos. Depois cumprimentou-me formalmen- se tratasse.
te, afinal é sargento e não sabia, passado tanto Corri para casa
tempo, como ia eu reagir… tão depressa quan-
Durante um instante, que durou toda a mi- to as pernas me le-
nha infância, lembrei-me da criança que foi este varam e foi rápida a
Sargento David, que herdou o mesmo nome do chegada, pois ainda
pai. O temido David do Mel, conhecido assim sinto os calcanhares
porque se dedicava a cuidar de colmeias, suas nas nádegas, de tão
e de outros, era – recordo-me bem – indiscu- rápido que corri.
tivelmente a encarnação do pior pesadelo, de Cheguei afogueado,
qualquer criança. Homem encorpado de pou- mas nada contei,
cas palavras, sem sorrisos, vivia numa casa po- nem em casa, nem
bre e isolada – na realidade abandonada pelo a ninguém. Contu-
seu legítimo dono – no extremo de um pinhal do, a partir desse dia
denso e antigo, onde me parecia então, o Sol prestei mais atenção
nunca entrava. Tinha uma mulher, da qual já às marcas negras
só lembro a magreza e a roupa muito remen- que o pequeno Da-
dada, e sete filhos. Havia um irmão mais velho vid, regularmente,
e depois era o Sargento David, exactamente da ostentava na face e
minha idade, das quatro irmãs e do irmãozito, nas costas. Mesmo
ainda bebé, pouco me lembro… aquele corte, que
O Sargento David foi meu colega de cartei- em tempos apresen-
ra, na escola primária. Rapaz magro e esguio, tara na orelha feito
cabelo rapado (…por causa dos piolhos) e uma “a subir ao pinhei-
roupa de flanela rude, antiga, daquelas que pi- ro manso”, passou
cam a pele e que ele usava fosse Verão ou In- a ter outro sentido.
verno. Era um rapaz calmo e silencioso, com Outro sentido pas-
uma caligrafia perfeita, que eu sempre invejei, saram, também, a
e um particular jeito para desenhar. Da sala de ter as palavras dos
aula lembro-me do dia, na longínqua 3ª clas- adultos, que sussur-
se, em que a professora mandou desenhar um ravam que o David
barco com velas e o pequeno Sargento David do Mel batia nos fi-
30 SETEMBRO/OUTUBRO 2005 U REVISTA DA ARMADA