Page 280 - Revista da Armada
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de licença ilimitada, concretizando a demis- por figuras como Guerra Junqueiro, Jaime forma de idealismo – que tinha raízes nal-
são definitiva em Junho de 1915. Conta-se Cortesão, Antero de Figueiredo, Leonardo guns filósofos europeus dos séculos XVIII
(ou contou-se) sobre a sua saída da Mari- Coimbra e o incontornável Teixeira de Pas- e XIX, mas que também se revia em Platão
nha algo que ilustrava uma eventual ati- coais, com quem viria a ter o diferendo que – constitui a essência do pensamento sergia-
tude de radical rotura com o novo regime, levou ao afastamento de António Sérgio. É no, e não deixa de pressupor uma enorme
de uma forma que corresponde à imagem interessante analisar este conflito, porque “fé” no ser humano e nas suas capacidades.
mítica e romântica que sempre o acompa- nele se compreende muito bem a estrutura Mas teve consequências imediatas em ques-
nhou, mas que sempre desmentiu. Dizia-se de pensamento de Sérgio, as razões porque tões aparentemente tão simples quanto a
então que entrara no gabinete do Ministro encetou e manteve a polémica com Teixeira visão sobre a tradição, sobre a importância
da Marinha e partira a espada à sua frente, de Pascoais e com outros autores posterio- da História de Portugal e sobre análise de
num simbólico gesto de recusa dos novos res, as suas ideias sobre História de Portu- certos fenómenos de um carácter identifica-
tempos. Exagero absoluto – diz o próprio gal, algumas das suas posições políticas e, do como tipicamente português, como era
(Diálogo) – “Singelissimamente, comprei de certo modo a sua prática corrente ou a o “saudosismo lusitano” de Pascoais. Para
meia folha de papel selado e pedi uma li- forma como encarou e viveu a vida. António Sérgio a tradição, tal e qual como
cença ilimitada”. Eu creio que esta relação Como nos descreve o próprio, quando era entendida na vivência portuguesa da
entre um mito criado pelas bocas segunda década do século XX,
do mundo – naturalmente com era algo de profundamente nega-
os exageros próprios da situação tivo e prejudicial a uma evolução
que lhe agradava, de certa forma necessária que devia assentar no
– e a desconstrução desse mesmo desenvolvimento científico e tec-
mito, constituem uma caracterís- nológico, e a que corresponderia
tica muito própria e típica da vida uma vivência social estruturada
de António Sérgio. Voltarei a falar de acordo com o racionalismo.
neste assunto, mais adiante. Para ele, a “tradição” apregoada
Mas pouco importa a forma não correspondia a uma realidade
como deixou a Marinha. A ver- concreta, mas um processo cons-
dade é que (na prática) o fez em truído que cultivava um passado
1910, respondendo – segundo ele anacrónico e bloqueava em abso-
– ao apelo de uma intervenção luto o desenvolvimento do país.
social que assumia um carácter “A tradição é não deixar perder
essencialmente pedagógico, que o que se ganhou, é o inconsciente
viria a ser uma constante dos tex- utilíssimo porque permite avançar
tos, conferências e debates em que sem sobressaltos” – escreveu em
participou até ao final da sua vida, 1912. Ou seja, a tradição – segun-
em 1969. A sua postura, nestes pri- do Sérgio – deve ser algo de cons-
meiros momentos de república, truído com uma utilidade desen-
corresponde a uma convicção de volvimentista, e não um conceito
vida que tem duas componentes fundamental e estruturante pró-
fundamentais: a primeira é a ânsia prio do povo e da nação. E com o
de participar na vida pública e de mesmo sentido – à maneira positi-
debater ideias, e debatê-las de for- António Sérgio, 2º tenente, em grande uniforme. vista, bem entendido – recusava a
ma agressiva, criando o ambiente História como elemento essencial
da polémica onde se sentia como peixe na frequentava na Escola Politécnica o ano à própria cultura, tratando-a como coisa
água; a segunda é a assunção de uma liber- preparatório que lhe daria acesso à Escola pouco mais que inútil, na medida em que
dade pessoal, uma forma de vida fora de Naval, fascinou-o a Matemática, o seu mé- a nação portuguesa era algo de consolidado
todas as instituições, dependente do seu todo e a forma como ela sustentava uma ex- e independente sem necessidade de alego-
trabalho quotidiano persistente e de resul- plicação de certos fenómenos da natureza. rias unificadoras. É importante referir que
tados imponderáveis. Juntadas as duas, é Relata-nos que, num período que teve de esta concepção não se entende sem que a si-
muito provável que a revolução de 5 de férias, ao viajar de comboio de Lisboa para tuemos na época em que Sérgio produziu a
Outubro tenha sido apenas um momento Paialvo, deixou que o seu pensamento de- maioria das considerações sobre o assunto.
ou um pretexto para concretizar uma ideia ambulasse pelo mundo da geometria ana- Vivia-se numa fase em que o desenvolvi-
antiga sem a violência da renúncia a uma lítica, apercebendo-se de como era fantásti- mento tecnológico e os sucessos científicos
carreira que tinha o peso de uma enorme ca a perfeita a ligação entre a manipulação fascinaram a elite europeia, que acreditava
tradição familiar. da álgebra e as correspondentes estruturas num futuro sem limites, assente na mesma
Num texto autobiográfico que escreveu geométricas. Foi como uma luz que se lhe racionalidade que tinha permitido esses
em 1915 no Livre d’Or do Instituto Jean Jac- acendeu na mente – escreveu mais tarde. mesmos sucessos. E a entrada de Portugal
ques Rousseau, diz que pensava dar aulas, Toda a natureza era assim explicada e or- nesta onda de progresso só tinha – para ele
tomar conta da direcção de uma revista e denada segundo uma criação pura da razão – um embaraço à vista, mas esse embaraço
colaborar com uma casa editora que teria humana, sem a qual a realidade não passa- estava-lhe agarrado à pele desde o final do
representação em Lisboa, em Londres e no va de um conjunto de sensações tão caóti- século XVI, e consistia num estado de igno-
Brasil, dando ideia que passaria a viver da cas que não deveriam ser, sequer, tomadas rância crónico que atribuía a vários facto-
sua escrita e dos seus estudos, assim eles como reais. A verdade (o conhecimento) res da vida nacional. É incontornável, nesta
merecessem a aceitação que supunha. É não está em descobrir as coisas, mas cons- interpretação, o peso da herança de Antero
sabido que tentou, sem sucesso, ser admi- titui um acto do pensamento validado na de Quental – que admirara particularmen-
tido como professor na Faculdade de Letras sua coerência. Não há verdade sem racio- te – e das suas “Causas da decadência dos
de Lisboa, e data de 1912 a sua entrada na nalidade, e só na mente humana a nature- povos peninsulares”, conferência pronun-
associação cultural Renascença Portuguesa, za tem sentido. Esta maneira de entender o ciada a 27 de Maio de 1871 no Casino Lis-
fundada por ele próprio (apesar de não mundo marcada por um racionalismo radi- bonense. Aliás, Sérgio abraçava a visão que
ter integrado nenhum órgão directivo) e cal (cartesiano, bem entendido) e por uma vinha de Antero, pela chamada Geração de
26 AGOSTO 2006 U REVISTA DA ARMADA