Page 284 - Revista da Armada
P. 284
HISTÓRIAS DA BOTICA (47)
A Revista da Armada,
A Revista da Armada,
eu e todos nós...
eu e todos nós...
screvo estas palavras de Nova Iorque, vida dos outros e começamos, lentamente, destinadas a ser lidas, mas a libertar quem
nos Estados Unidos da América. Estou como que forçados por imperiosa e inexpli- as escreve. É assim, acredito honestamente,
Enum quarto de Hotel, no 42º andar. Da cável necessidade, a escrever ainda mais… com todas as formas de arte, independente-
janela, uma imensidão de torres altíssimas Nascem, desta maneira, histórias que são mente do nível a que se praticam…
espalham-se a perder de vista. Parece -me, mais do coração, do que da razão… Assim sendo, quando, pela mão de um
destas alturas e hoje em particular, um es- Escrever sobre a RA, é escrever sobre o grande amigo, o convite para escrever na
paço despido de humanidade. Senti-me Doc e o Doc não sou eu...O Doc é mais do RA surgiu, já existiam algumas das Histó-
subitamente só – naquela solidão de alma, que o médico que, agora, após tantas histó- rias da Botica e era apenas um acto de co-
que muitas vezes me acompanha. Daí que rias, o nome contem…Mesmo antes de ser ragem, dar-lhes vida pública. As histórias
senti vontade de escrever sobre a Revista médico, já o Doc tinha resmas de histórias, iniciais – aquelas em que o Doc mais temeu
da Armada (RA), o que tem representado encriptadas em papéis maltratados, arma- pela exposição – foram pescadas directa-
para mim e, admito, representa para mui- zenados em baforentas caixas de cartão, mente dos escritos, silenciosos, dos tempos
tos de nós: o outro lado da Marinha, o lado compradas num obscuro alfarrabista, onde de embarque. Escrever nos embarques foi
das letras… havia, também, adquirido um conjunto de sempre fácil, muito fácil: por um lado ha-
via tempo, por outro lado,
e muito mais significativo,
havia estímulo para a alma
do observador atento. Em
realidade, cada navio está
cheio de histórias e até a
viagem mais insignifican-
te impregna o ambiente
de emoções. Estão lá os
ingredientes todos para es-
crever: a distância, a sau-
dade e o céu – de um azul
que (tenho a certeza), ra-
ramente se confunde, com
o outro azul, mais pro-
fundo e poético, do mar
revolto, sempre presente
no nosso espírito…Cada
marinheiro soube contar a
sua história, quase sempre
entre gargalhadas, desejos
e lamentações, pois a vida
do mar é dura e, percebi
por entre os sorrisos, dei-
xa cicatrizes no corpo e
na alma…
Partilham-se vidas a bor-
do. E o médico, se o sou-
ber e quiser, toma contac-
to com os anseios, quer
dos mais pequenos, quer
dos maiores a bordo. Pois
cada homem, a navegar,
deixou qualquer coisa
Ora precisamente as letras são uma parte velhos livros. Esses livros encerravam, em para trás e procura achar algo no futuro…
importante do meu ser. É que eu, tal como determinada época, para o Doc, tudo o que mesmo que seja apenas mitigar a distân-
muitos, fui, mais vezes do que desejaria, to- a vida oferece, tudo o que da vida se pode cia…Dizem alguns (decerto egocêntricos e
cado pelo trágico que a vida arrasta…Desde desejar…Desde os monstros mais horren- mal informados) que dos fracos não reza a
muito cedo, agarrei em folhas e cadernos e dos, até aos heróis mais ousados (pois sa- história. Ao contrário, é de muitos deles, dos
despejei para lá o que me ia na alma. Pois bemos todos, onde há um monstro tem que fracos e dos mais frágeis, que são feitas as
isto de escrever é dar forma ao silêncio, mui- haver sempre um herói, ainda que este últi- Histórias da Botica. Há muitas razões para
tas vezes pesado, que vai no mais íntimo de mo, classicamente, só muito tarde se aper- isto. A primeira é de que o Doc, compreen-
nós. Com o tempo, e muita escrita, começa- ceba das suas vitórias). Ninguém tinha lido derá o leitor atento, se sente, muito próximo
mos também a tentar adivinhar o vazio na as histórias, pois há histórias que não estão de quem carrega algum tipo de sofrimento,
30 AGOSTO 2006 U REVISTA DA ARMADA