Page 6 - Revista da Armada
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REFLECTINDO…                                                                             XVI


           A UNIVERSALIDADE DOS DIREITOS HUMANOS


         A                                  Darfur (Sudão), na RD do Congo, no Zim-  de estabilidade e desenvolvimento, está bem
               referência aos direitos humanos é anti-
                                            babué, no Ruanda, no Burundi, na Libéria,  recordada no documento da ONU de 2 de
               ga, bem como a tentativa de os identi-
                                            na Somália, etc.
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               ficar, caracterizar e fazer respeitar.
           Há mesmo quem pretenda que a primei-  Há assim razões de ordem política, outras   Ao assinarem a Carta das Nações Unidas,
         ra evocação desses direitos foi publicada por  de ordem cultural, outras ainda relaciona-  os Estados não só beneficiam dos privilégios da
         Ciro II, rei dos persas, em 538 a.C., e que che-  das com a acção de governos tiranos e com  soberania, como também aceitam as suas res-
         gou até nós gravada no “Cilindro de Ciro”,  a má-governação, que mostram como esta-  ponsabilidades. Quaisquer que tenham sido as
         descoberto em 1879  . Porém, neste édito,  mos longe de poder considerar universal a  percepções que prevaleceram quando o sistema
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         Ciro apenas concede direitos aos povos por  aplicação dos direitos humanos.   vestfaliano pela primeira vez criou a noção de
         ele libertados quando conquistou Babilónia.   Nos dois primeiros casos, a comunidade  Estado soberano, hoje, esta noção inclui clara-
         Declarando a liberdade religiosa e abolindo a  internacional tem manifestado as suas críti-  mente a obrigação do Estado proteger o bem-
         escravatura, os hebreus puderam regressar à  cas através da acção diplomática, recorrendo  estar do seu próprio povo e de assumir as suas
         Palestina, após cerca de 50 anos de cativeiro.  também a meios que vão desde a persua são  obrigações em relação à mais vasta comunidade
         É notável para a época.            à ameaça de sanções de diversa ordem, fre-  internacional  .
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           Mas, pondo de parte as referências his-  quentemente de natureza económica. No   Entre estas obrigações, certamente que
         tóricas remotas, o conceito surgiu no sécu-  último caso e a partir de 1995, tem vindo a  está incluído o apoio e a solidariedade na
         lo XVIII, divulgado durante a Revolução  admitir recorrer a atitudes bem mais duras,  defesa dos direitos humanos, em qualquer
         Francesa, através da Declaração dos Di-  como a intervenção militar coerciva.  parte do mundo.
         reitos do Homem e do Cidadão, de 26 de   Mas, as diferenças culturais continuam a   É necessário continuar a lutar pelo princí-
         Agosto de 1789. E só passaram a ter o carác-  ser a mais frequente dificuldade para o res-  pio da aplicação dos direitos humanos a toda
         ter de direitos universais após a Declaração  peito efectivo dos direitos humanos. Na ver-  e qualquer pessoa humana. Diz Souto de
         Universal dos Direitos Humanos ter sido  dade, embora a universalidade dos direitos  Moura: a condição para se ser sujeito dos direitos
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         adoptada pela Assembleia Geral das Na-  humanos tenha sido reconhecida pela Or-  humanos é, simplesmente, ter-se nascido  .
         ções Unidas, em 10 de Dezembro de 1948.  ganização da Conferência Islâmica na De-  Os direitos humanos devem existir em
         Foi assinada por 48 dos 56 Estados então  claração do Cairo de 5 de Agosto de 1990,  cada pessoa humana. Não são negociáveis
         existentes, em Paris, em consideração pelo  pelos Estados africanos na Declaração de  nem constituem um meio para alcançar algo.
         local onde havia sido proclamada a Decla-  Tunes de 6 de Novembro de 1992, pelos paí-  Os direitos humanos constituem um ‘fim’.
         ração de 1789.                     ses asiáticos na Declaração de Bangkok de   A paz e a justiça no mundo, outras duas
           Já foi referido em artigo anterior   que  23 de Abril de 1993 e pela América Latina e  grandes aspirações da humanidade, só são
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         este e de outros importantes documentos  Caraíbas na Declaração de S. José da Cos-  possíveis numa base de respeito pelos direi-
         estruturantes da Ordem Internacional nas-  ta Rica de 22 de Janeiro de 1993, frequente-  tos humanos e pela dignidade do homem.
         cida da Segunda Guerra Mundial foram  mente foi referida nestas conferências a ne-                    Z
         escritos por personalidades da cultura oci-  cessidade de atender às diferenças culturais   António Emílio Sacchetti
         dental ou com forte influência da cultura  e tradicionais dos povos.                                VALM
         ocidental.                           Como escreveu o professor brasileiro An-  Notas
           Embora todas as Nações tenham adopta-  tónio Trindade, que participou nos traba-  1  Em cerâmica, hoje no British Museum.
         do a Declaração Universal e hoje todas sejam  lhos daquelas conferências, alguns países   2  Reflectindo XV, ‘A Moral e a Ética’, Revista da Ar-
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         membros da ONU  , os direitos humanos  da Conferência Islâmica resistentemente iden-  mada, Nov 2008, p. 5.
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         não têm aplicação na grande maioria dos Es-  tificam no movimento internacional dos direitos   com o estatuto de Observador. Só a República da Chi-
         tados. Basta ler a Declaração e acompanhar  humanos um suposto produto do «pensamento   na (Taiwan) não é membro da ONU, por não ser reco-
         os noticiários internacionais  . 4  ocidental» que não tem levado em conta as cha-  nhecida pela grande maioria dos Estados. Aguarda-se
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           São várias as razões que justificam esta  madas «particularidades regionais»  .  o desenvolvimento de várias declarações unilaterais de
         frustrante situação.                 E não é só isto. Como a Declaração Uni-  independência: Kosovo (17Fev2008), República Turca
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           Em primeiro lugar, há muitos Estados que  versal dos Direitos Humanos não é prati-  (Agosto 2008).
         entendem que o interesse nacional sempre  cável para todos nem pode ser emendada   4  Em 3NOV08 foi noticiada no DN mais uma jovem
         terá que prevalecer, ou que o interesse co-  de modo a todos satisfazer, fazem-se ou-  somali morta por lapidação, estamos a assistir a mais
         mum se sobrepõe aos direitos individuais  tras declarações, mesmo no seio da cultu-  uma tragédia humana no Kivu Norte (RD do Congo) e a
         de qualquer natureza. No entanto, mesmo  ra europeia. Só para referir algumas, temos   revista Além-mar de NOV08 noticiou que em 2007 pelo
                                                                               menos 1252 pessoas foram executadas, em 24 países.
         nestas circunstâncias, tais opções não teriam  a Convenção para a Protecção dos Direitos   5  O já citado Reflectindo XV, ‘A Moral e a Ética’.
         que ignorar os direitos humanos pois não  do Homem e das Liberdades Fundamentais   6  Trindade, Ph.D. António Augusto, “O Processo Pre-
         são incompatíveis com o respeito que estes  (Conselho da Europa 04NOV59), a Carta dos   paratório da Conferência Mundial de Direitos Huma-
         direitos devem merecer.            Direitos Fundamentais da União Europeia   nos, Viena, 1993, p. 28. http://ftp.unb.br/pub/down-
                                                                               load/ipr/rel/rbpi/1993/130.pdf (45p.).
           Para outros Estados, há valores morais  (Roma 07.12.00, adaptada em Estrasburgo   7  Follow-up to the outcome of the Millennium Summit,
         que estão em contradição com os direitos hu-  12.12.07 e referida na Tratado de Lisboa), a   Assembleia-geral das Nações Unidas, Doc. A/59/565,
         manos, assunto que foi já tratado no número  Declaração Americana dos Direitos e Deve-  2 de Dezembro de 2004, pp. 21 e 22. In signing the Char-
         anterior da Revista da Armada  .   res do Homem (Bogotá, Abril 1948), a Con-  ter of the United Nations, States not only benefit from the
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                                                                               privileges of sovereignty but also accept its responsibilities.
           Por último, os direitos humanos são cla-  venção Interamericana sobre os Direitos do
                                                                               Whatever perceptions may have prevailed when Westphalian
         ra e constantemente ofendidos em grande  Homem (San José 22NOV69, com protocolo   system first gave to the notion of State sovereignty today it
         número de países considerados como Esta-  de San Salvador 17N0V98), a Carta Africana   clearly carries with it obligation of a State to protect the wel-
         dos Irresponsáveis (Rogue States), Estados  dos Direitos do Homem e dos Povos (Nairo-  fare of its own peoples and meet its obligations to the wider
                                                                               international community.
         Falhados (Failed States) ou Estados Preo-  bi 26JUN81), etc.            8  Moura, José Souto de (do Supremo Tribunal de Jus-
         cupantes (States of Concern). Como exem-  A responsabilidade universal dos Estados,   tiça),  Relativismo, tolerância, multiculturalismo, Brotéria,
         plo destes casos basta evocar a situação no  nomeadamente daqueles que são exemplo   Vol. 166, n.º 5/6, Mai/Jun 2008, p.
         4  JANEIRO 2009 U REVISTA DA ARMADA
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