Page 6 - Revista da Armada
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REFLECTINDO… XVI
A UNIVERSALIDADE DOS DIREITOS HUMANOS
A Darfur (Sudão), na RD do Congo, no Zim- de estabilidade e desenvolvimento, está bem
referência aos direitos humanos é anti-
babué, no Ruanda, no Burundi, na Libéria, recordada no documento da ONU de 2 de
ga, bem como a tentativa de os identi-
na Somália, etc.
Dezembro de 2004:
ficar, caracterizar e fazer respeitar.
Há mesmo quem pretenda que a primei- Há assim razões de ordem política, outras Ao assinarem a Carta das Nações Unidas,
ra evocação desses direitos foi publicada por de ordem cultural, outras ainda relaciona- os Estados não só beneficiam dos privilégios da
Ciro II, rei dos persas, em 538 a.C., e que che- das com a acção de governos tiranos e com soberania, como também aceitam as suas res-
gou até nós gravada no “Cilindro de Ciro”, a má-governação, que mostram como esta- ponsabilidades. Quaisquer que tenham sido as
descoberto em 1879 . Porém, neste édito, mos longe de poder considerar universal a percepções que prevaleceram quando o sistema
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Ciro apenas concede direitos aos povos por aplicação dos direitos humanos. vestfaliano pela primeira vez criou a noção de
ele libertados quando conquistou Babilónia. Nos dois primeiros casos, a comunidade Estado soberano, hoje, esta noção inclui clara-
Declarando a liberdade religiosa e abolindo a internacional tem manifestado as suas críti- mente a obrigação do Estado proteger o bem-
escravatura, os hebreus puderam regressar à cas através da acção diplomática, recorrendo estar do seu próprio povo e de assumir as suas
Palestina, após cerca de 50 anos de cativeiro. também a meios que vão desde a persua são obrigações em relação à mais vasta comunidade
É notável para a época. à ameaça de sanções de diversa ordem, fre- internacional .
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Mas, pondo de parte as referências his- quentemente de natureza económica. No Entre estas obrigações, certamente que
tóricas remotas, o conceito surgiu no sécu- último caso e a partir de 1995, tem vindo a está incluído o apoio e a solidariedade na
lo XVIII, divulgado durante a Revolução admitir recorrer a atitudes bem mais duras, defesa dos direitos humanos, em qualquer
Francesa, através da Declaração dos Di- como a intervenção militar coerciva. parte do mundo.
reitos do Homem e do Cidadão, de 26 de Mas, as diferenças culturais continuam a É necessário continuar a lutar pelo princí-
Agosto de 1789. E só passaram a ter o carác- ser a mais frequente dificuldade para o res- pio da aplicação dos direitos humanos a toda
ter de direitos universais após a Declaração peito efectivo dos direitos humanos. Na ver- e qualquer pessoa humana. Diz Souto de
Universal dos Direitos Humanos ter sido dade, embora a universalidade dos direitos Moura: a condição para se ser sujeito dos direitos
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adoptada pela Assembleia Geral das Na- humanos tenha sido reconhecida pela Or- humanos é, simplesmente, ter-se nascido .
ções Unidas, em 10 de Dezembro de 1948. ganização da Conferência Islâmica na De- Os direitos humanos devem existir em
Foi assinada por 48 dos 56 Estados então claração do Cairo de 5 de Agosto de 1990, cada pessoa humana. Não são negociáveis
existentes, em Paris, em consideração pelo pelos Estados africanos na Declaração de nem constituem um meio para alcançar algo.
local onde havia sido proclamada a Decla- Tunes de 6 de Novembro de 1992, pelos paí- Os direitos humanos constituem um ‘fim’.
ração de 1789. ses asiáticos na Declaração de Bangkok de A paz e a justiça no mundo, outras duas
Já foi referido em artigo anterior que 23 de Abril de 1993 e pela América Latina e grandes aspirações da humanidade, só são
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este e de outros importantes documentos Caraíbas na Declaração de S. José da Cos- possíveis numa base de respeito pelos direi-
estruturantes da Ordem Internacional nas- ta Rica de 22 de Janeiro de 1993, frequente- tos humanos e pela dignidade do homem.
cida da Segunda Guerra Mundial foram mente foi referida nestas conferências a ne- Z
escritos por personalidades da cultura oci- cessidade de atender às diferenças culturais António Emílio Sacchetti
dental ou com forte influência da cultura e tradicionais dos povos. VALM
ocidental. Como escreveu o professor brasileiro An- Notas
Embora todas as Nações tenham adopta- tónio Trindade, que participou nos traba- 1 Em cerâmica, hoje no British Museum.
do a Declaração Universal e hoje todas sejam lhos daquelas conferências, alguns países 2 Reflectindo XV, ‘A Moral e a Ética’, Revista da Ar-
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membros da ONU , os direitos humanos da Conferência Islâmica resistentemente iden- mada, Nov 2008, p. 5.
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A ONU tem hoje 192 membros, mais a Santa Sé
não têm aplicação na grande maioria dos Es- tificam no movimento internacional dos direitos com o estatuto de Observador. Só a República da Chi-
tados. Basta ler a Declaração e acompanhar humanos um suposto produto do «pensamento na (Taiwan) não é membro da ONU, por não ser reco-
os noticiários internacionais . 4 ocidental» que não tem levado em conta as cha- nhecida pela grande maioria dos Estados. Aguarda-se
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São várias as razões que justificam esta madas «particularidades regionais» . o desenvolvimento de várias declarações unilaterais de
frustrante situação. E não é só isto. Como a Declaração Uni- independência: Kosovo (17Fev2008), República Turca
do Norte de Chipre (1974), Abcásia e Ossétia do Sul
Em primeiro lugar, há muitos Estados que versal dos Direitos Humanos não é prati- (Agosto 2008).
entendem que o interesse nacional sempre cável para todos nem pode ser emendada 4 Em 3NOV08 foi noticiada no DN mais uma jovem
terá que prevalecer, ou que o interesse co- de modo a todos satisfazer, fazem-se ou- somali morta por lapidação, estamos a assistir a mais
mum se sobrepõe aos direitos individuais tras declarações, mesmo no seio da cultu- uma tragédia humana no Kivu Norte (RD do Congo) e a
de qualquer natureza. No entanto, mesmo ra europeia. Só para referir algumas, temos revista Além-mar de NOV08 noticiou que em 2007 pelo
menos 1252 pessoas foram executadas, em 24 países.
nestas circunstâncias, tais opções não teriam a Convenção para a Protecção dos Direitos 5 O já citado Reflectindo XV, ‘A Moral e a Ética’.
que ignorar os direitos humanos pois não do Homem e das Liberdades Fundamentais 6 Trindade, Ph.D. António Augusto, “O Processo Pre-
são incompatíveis com o respeito que estes (Conselho da Europa 04NOV59), a Carta dos paratório da Conferência Mundial de Direitos Huma-
direitos devem merecer. Direitos Fundamentais da União Europeia nos, Viena, 1993, p. 28. http://ftp.unb.br/pub/down-
load/ipr/rel/rbpi/1993/130.pdf (45p.).
Para outros Estados, há valores morais (Roma 07.12.00, adaptada em Estrasburgo 7 Follow-up to the outcome of the Millennium Summit,
que estão em contradição com os direitos hu- 12.12.07 e referida na Tratado de Lisboa), a Assembleia-geral das Nações Unidas, Doc. A/59/565,
manos, assunto que foi já tratado no número Declaração Americana dos Direitos e Deve- 2 de Dezembro de 2004, pp. 21 e 22. In signing the Char-
anterior da Revista da Armada . res do Homem (Bogotá, Abril 1948), a Con- ter of the United Nations, States not only benefit from the
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privileges of sovereignty but also accept its responsibilities.
Por último, os direitos humanos são cla- venção Interamericana sobre os Direitos do
Whatever perceptions may have prevailed when Westphalian
ra e constantemente ofendidos em grande Homem (San José 22NOV69, com protocolo system first gave to the notion of State sovereignty today it
número de países considerados como Esta- de San Salvador 17N0V98), a Carta Africana clearly carries with it obligation of a State to protect the wel-
dos Irresponsáveis (Rogue States), Estados dos Direitos do Homem e dos Povos (Nairo- fare of its own peoples and meet its obligations to the wider
international community.
Falhados (Failed States) ou Estados Preo- bi 26JUN81), etc. 8 Moura, José Souto de (do Supremo Tribunal de Jus-
cupantes (States of Concern). Como exem- A responsabilidade universal dos Estados, tiça), Relativismo, tolerância, multiculturalismo, Brotéria,
plo destes casos basta evocar a situação no nomeadamente daqueles que são exemplo Vol. 166, n.º 5/6, Mai/Jun 2008, p.
4 JANEIRO 2009 U REVISTA DA ARMADA