Page 30 - Revista da Armada
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NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA (10)
A passagem…
para a outra margem…
Pergunta a quem te viu se esquecer pode, No Hospital da Marinha tudo generica- outros médicos que já não estão por ou-
Um só momento, a luz dos olhos teus! mente parece igual, só o coração das pes- tras tantas razões e até determinada fun-
Ao mártir, se lhe lembra a sua crença! soas parece ter mudado… Sabemos bem cionária administrativa – que por facilida-
Ao crente, se lhe lembra ainda o seu Deus! que tudo o que é novo assusta e faz temor. de vou aqui tratar por Madame Leopardo
Todos os dias saem notícias novas sobre o e que também já não está... Aqueles que
Antero de Quental, Poesia Completa futuro do Hospital da Marinha – por vezes lhe conheceram o jeito exuberante no fa-
contraditórias – o que confunde e faz so- lar e no vestir vão reconhecê-la imediata-
AMarinha, a mítica (aquela que no frer. Na verdade, todos os seres humanos, mente…Foi sempre minha amiga.
coração carregamos), dividir-se-á em todas as culturas, precisam de ver um
sempre entre as duas margens do caminho, de sentir uma orientação e em No corredor encontrei dois outros
Tejo. Ora eu acabei de passar para a ou- Portugal, afigura-se particularmente ver- doentes. Um deles, velho marinheiro,
tra Margem: a Margem Norte. Voltei ao dade no tempo em que vivemos, a única trazia a mulher de quem vivamente me
Hospital da Marinha, cujas pedras, em certeza é a incerteza... lembrava. Este “jovem” casal é bastante
tempos, reconheci pelo nome. Encontrei peculiar, pois ela é chinesa (embora te-
muitas pessoas, particularmente entre os Na passagem deixei grandes amigos na nha nascido em Jakarta, Indonésia). Ele,
mais humildes, que ainda de mim se lem- “Outra Banda” – de onde a perspectiva, alentejano profundo, conheceu a espo-
bravam e, quando as reconheci, eu pró- por estar mais próxima dos navios, sabe sa em Macau. Estão casados há muitos
prio tive sentimentos que se descrevem mais a maresia… Vou ter saudades da ter- anos, dos cerca de oitenta que cada um
melhor pelas palavras acima do grande túlia do “Garfo de Oiro”, particularmente já viveu…Depois encontrei outros e ain-
Antero de Quental. apimentada por determinado homem de da mais outros…
leis, com uma especial visão do Mundo,
Voltei ainda para outras pedras – antigas de Deus e da Vida, que muito alegrou os O Hospital da Marinha tem um pou-
e também da Margem Norte – em que há meus dias…e por todos os outros amigos, co de nós todos (…e não me refiro só a
muitos anos também militei. Nestes dois especialmente de alguns que também fi- quem lá trabalha). É feito por todos e a
lugares da minha alma está presente o zeram a viagem, para lá do Tejo… sua história – independentemente do fi-
Tejo, a ponte e a passagem. O Tejo será nal que vier a acontecer - falará sempre
sempre o lugar onde Lisboa começa e o Assim de repente, lembrei-me de muitas de todos. As suas enfermarias estão cheias
nosso ser sente – no silêncio mais profun- outras pessoas que comigo partilharam o de sentimentos e vozes de outros tempos,
do – esta coisa do sentir português…que Hospital de então, de um tempo em que feitos das dores de outros tantos homens
para alguns fará sempre sentido. eu também lhe pertencia…Um cirurgião da Armada, que por lá passaram…Tem a
que já partiu na derradeira viagem, muitos sua dose de injustiças, de alegrias e sobre-
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tudo das esperanças de almas
passadas e, certamente, de al-
gumas presentes…Existe. É um
ser vivo e falou-me naquele
dia (numa linguagem própria,
que só alguns sabem ler…).
E, neste trajeto e nesta via-
gem, li mais uns poemas, ouvi
vozes antigas e escrevi mais
algumas palavras. – Estas que
devem ser lidas em voz pe-
quenina, mesmo em surdina,
não vão fugir para uma ilha
distante, para onde os Mari-
nheiros anónimos as deixam
partir, quando pela proa sen-
tem emoções de um tempo
passado…
Que bela tarde esteve hoje,
segredou-me, assim, um des-
ses “lobos de mar”, enquan-
to atravessava com ajuda de
uma bengala a distância en-
tre o Terreiro de Santa Clara e
a escadaria do Hospital. E ti-
nha razão, que bela tarde es-
tava naquele dia, para apreciar
tanta poesia…
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