Page 25 - Revista da Armada
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dente, no intervalo de uma sessão do Parlamento os jornais, mesmo os monárquicos; no dia do fu- embora o seu afastamento tivesse sido aconselha-
em que veementemente criticava os senhores De- neral todos os senhores deputados usaram grava- do pelo Major-General da Armada sem direito a
putados que nos Passos Perdidos, se entretinham, tas pretas e o seu corpo foi velado por centenas de qualquer pensão, fosse obrigado a deitar mão de
como parece que ainda hoje fazem, em conversas pessoas, desde o então presidente da república até tudo aquilo que lhe podia granjear meios de fazer
amenas, entrando na sala quando a campainha numerosíssimos marinheiros anónimos que assim face às despesas do dia a dia. Falando francês com
do Presidente os chamava para a votação final das quiseramhomenagearquemsempreosapoiaranas a maior fluência, foi contra-mestre numa fábrica
leis em cuja discussão não tinham tomado parte e suas reivindicações, quando justas. O Almirante e mais tarde vendedor ambulante de uma editora,
o faziam por indicação dos partidos a que perten- nasceu em Lagos, terra de pescadores e homens andando a bater pelas portas para conseguir ven-
ciam. Estava-se no mês de Junho, particularmen- do mar e de muito cedo se interessou e apaixonou der os livros da sua empregadora.
te quente, e na sala das sessões não havia ar con- por tudo aquilo que ao mar respeitava; feito o cur-
dicionado nem naquele tempo se sabia o que isso so secundário deu entrada na Escola Naval onde Assassinado o Senhor presidente Sidónio Pais,
era; o Almirante, manifestamente incomodado, se formou e, guarda-marinha foi colocado em Mo- foi, depois de várias e delicadas negociações, au-
dirigiu-se ao bar, onde tomou, sôfrego, um copo de çambique e em várias canhoneiras e navios auxi- torizado a regressar ao País, onde foi reintegrado
gelado: É possível que este com o seu efeito vaso- liares iniciou a vida de marinheiro. Mais tarde, já na Armada com o posto a que tinha direito, vin-
constritor,tivesseprovocado,nomúsculocardíaco, tenente, fez variadíssimos trabalhos de hidrografia do mais tarde a ser promovido por distinção a
por razões de vizinhança anatómica e debilitação já e oceanografia, pois nós com o nosso desleixo ha- contra-almirante.
existente, aquilo que hoje chamamos de isquémia bitual, nunca tínhamos feito os levantamentos da
aguda do miocárdio; sentiu-se mal e deve ter tido costa e servíamo-nos de cartas inglesas para entrar Acérrimo defensor da nossa entrada na guer-
uma dor no hemitórax esquerdo, pois a ele levou em portos nacionais; entretanto, em vários locais ra de 14-18, que entendia ser a melhor maneira
a mão direita, ao mesmo tempo que cambaleou; havialevantamentosindígenas,poisasgrandespo- de defender os nossos interesses nos territórios
estava acompanhado por um ultramarinos para onde os grandes impérios co-
colega por acaso médico, que lonialistas continuavam a olhar e mais ou menos
o amparou e ajudou a tomar
um transporte que o levou ao abertamente hostilizavam, a
hospital de S. Luís, onde ficou sua acção e os seus artigos em
internado em estado grave. quase todos os jornais foram
Imediatamente chamado um uma grande ajuda na criação
médico amigo que o conhecia do ambiente que então houve
bem como doente, e a família, permitindo a criação do Cor-
foi tratado com tudo aquilo po Expedicionário Português,
de que se dispunha na épo- que em França tomou parte
ca e não faço ideia alguma do no grande conflito. Data des-
que tenha sido, pois, curioso e sa época uma fotografia do
interessado, procurei, naquele Almirante com os seus dois
Hospital, saber que recursos filhos mais velhos, todos far-
haveria para tratar um ata- dados, pois estes cumpriram
que cardíaco, a que já alguns como lhes competia os seus
chamavam angina de peito, deveres militares.
mas toda a documentação re-
lativa a doentes internados foi O Dr. Álvaro José Leotte D’Athayde no uso da palavra. Tinha sido criada a Di-
visão Naval de Defesa cujo
sempre destruída de dez em dez anos e assim, nada tências lançavam olhares vesgos e ambiciosos para Comando lhe foi entregue e
consegui saber. É preciso pensar-se que não havia aquilo que era legitimamente nosso por o termos ele desenvolveu uma imensa
electrocardiogramas, não se faziam medições da descoberto e conquistado. Tomou, assim, parte em actividade com a organização
tensão arterial, pouco uso se fazia do estetoscópio numerosasacçõesmilitares,tendomerecidodosvá- das escoltas aos transportes que levavam os nos-
e a própria auscultação cardíaca era feita directa- riosComandosprestigianteslouvores;regressadoà sos soldados para França, e com o apresamento
mente com o ouvido aplicado no hemitórax esquer- Metrópole, voltou a Moçambique como secretário dos navios mercantes alemães que estavam no
do separados apenas por uma toalha, tanto quanto de António Enes e aí, mais homem do mar do que Tejo desde o início da guerra.
possível de algodão pois as de linho provocavam de gabinete, voltou às canhoneiras e navios auxi- Espírito multi-facetado o Almirante foi um no-
ruídos adventícios prejudiciais à auscultação; não liares, tendo nessa altura explorado as margens do tável artista plástico como o testemunha os seus
havia cardiologistas nem especialistas, mas apenas Zambeze,oquenuncatinhasidofeito,numaacção trabalhos quer de aguarela quer de óleo sempre
médicos, mais clínicos do que qualquer outra coisa, difícil e que foi coroada de êxito. com motivos navais, que nos legou.
uns cirurgiões, outros internistas, que eram obri- Cavaleiro da Torre e Espada, fez uma curta pas- Senhores Cadetes: como patrono foi-vos desig-
gados a tratar indiscriminadamente com os fracos sagem por S. Tomé, como governador e, em 36 dias nado o Almirante Leotte do Rego. Ouvistes a voz
recursos de que dispunham, os vários doentes que conseguiu pôr, à boa maneira da Marinha, alguma autorizada do senhor Almirante e as simples pa-
os procuravam. De qualquer forma, o Almirante, ordem num território que verdadeiramente estava lavras em que procurei sintetizar a sua vida; com
com a consciência da gravidade do seu estado, deu a saque sem rei nem roque. a única autoridade que me dá o ano em que nasci
à sua esposa, então presente, as indicações do que Procurando que a Marinha tivesse o lugar e a pobre cadáver adiado – como diria Fernando Pessoa
pretendia fosse feito: acompanhamento religioso categoria a que tinha legítimo direito, tomou parte – permito-me dizer-vos que, seguindo o exemplo de
sem honras militares nem discursos e que o seu numa revolução em que foi vencido, tendo acabado um homem que sempre serviu a Marinha sem dela
caixão fosse transportado pelos queridos marinhei- por se refugiar a bordo de um cruzador inglês que se servir quer para si quer para os seus, duas ve-
ros com quem convivera e que comandara durante acabou por levá-lo a Gibraltar de onde foi mais tar- zes condecorado com a Torre e Espada, promovido
uma vida inteira. Tudo foi cumprido e o seu cor- de transferido para França por um navio de guerra a contra-almirante por distinção, honrareis quem
po ficou depositado num gavetão do cemitério dos francês: naquele tempo, quando afastadas do poder foi acima de tudo um grande Marinheiro, lutando
Prazeres, por acaso ou talvez não, junto daquele por quaisquer razões, as pessoas não procuravam toda a vida por uma Marinha melhor.
onde jazia o seu filho Pedro, morto em 1919. Por em Paris tirar cursos mais ou menos filosóficos, Aos Senhores Almirantes e a todos os presen-
determinação parlamentar o seu funeral foi nacio- mas apenas trabalho para conseguirem sobreviver, tes o agradecimento muito reconhecido de toda
nal e à sua morte se referiram elogiosamente todos pois no seu caso, demitido da Marinha por deserto a família.
Álvaro José Leotte D’Athayde
CMG MN
REVISTA DA ARMADA • FEVEREIRO 2012 25