Page 31 - Revista da Armada
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NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA                                            REVISTA DA ARMADA | 502

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TODAS AS FORMAS
E TAMANHOS DO BEM...

“O meu preceito é este: que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei. Ninguém tem maior amor que o daquele que dá a vida por seus amigos”
In Evangelho de São João, capítulo 15, versículo 12

Conheci-o na minha breve passagem pela Escola Naval, há já             Outros marinheiros, mais antigos ou mais modernos, terão ou-
    muitos anos. Era, percebi imediatamente, uma pessoa diferen-     tras tantas histórias envolvendo o Capelão Amorim. Contudo acre-
te. Uma personalidade cativante, mesmo admitindo que era um          dito, e penso que nunca terá mesmo acontecido, que o nosso ca-
sacerdote fardado… um capelão…                                       pelão alguma vez tenha questionado alguém sobre a intensidade
                                                                     da sua Fé, ou sobre a regularidade da sua prática católica… este era
   Desde então falámos durante muitos anos de muitas coisas, do      um dos seus encantos e ainda outra forma de fazer o Bem…
Bem e do Mal, da Humanidade e de coisas triviais (de que a vida
é perene) e, também, da Marinha. Acompanhou-me sempre, bap-            Soube do seu sofrimento e também soube que, na despedida,
tizou os meus três filhos. Telefonava regularmente a propósito do    o nosso padre marinheiro, preferiu algum isolamento, certamen-
meu filho diferente. Durante internamentos e tormentas, sempre       te para não perturbar os amigos. Se pudesse ter falado com ele
esteve lá, uma voz amiga, no seu jeito divertido, inigualável. Ad-   dir-lhe-ia, se a coragem me não faltasse, que gostávamos dele e
mito que foi esta a sua postura, ao longo de toda a sua vida Naval,  que íamos ter muitas saudades. As mesmas que temos quando um
não era um padre, era um amigo – independentemente do posto,         membro mais chegado da nossa família parte para a outra margem
ou lugar que na vida cada um ocupava. Acabava sempre por nos         do rio da verdade…
conhecer profundamente. Era nele em quem confiávamos a alma,
na bonança e na tormenta…                                              Ele, a sorrir, responderia humildemente, que não mereceria tan-
                                                                     ta preocupação, tanto elogio. Contudo, tomo-o por certo, o nosso
   Esta forma de fazer o Bem já bastaria. Contudo, uma das muitas    Capelão Amorim cumpriu o preceito máximo do seu “chefe celes-
capacidades do Capelão Amorim, era de se adaptar às múltiplas        tial” (expressa claramente na citação acima): dedicou a vida aos
matizes do Bem e às formas de o por em prática. Ora estivemos        seus amigos – todos nós, que tivemos a felicidade de o conhecer.
os dois em Timor. O Capelão visitou-nos pelo Natal na Vasco da       Teve uma vida cheia, preenchida pelas necessidades de outros…
Gama. Quis rezar missa em Manatuto, acompanhado por um con-
junto representativo de voluntários – entre os quais eu próprio,       Ora o vazio que agora sentimos é uma medida da sua dedica-
como fotógrafo…                                                      ção, que certamente não será esquecida pela Marinha. Ficaremos
                                                                     sempre com as fotos que com ele tirámos ou a memória da sua voz
   A missa decorreu ao ar livre, num ambiente diferente daquilo      amiga. Quando isso nos parecer pouco, teremos que aceitar que ti-
que eu, e provavelmente o Capelão Amorim, alguma vez havíamos        vemos a felicidade de conviver com alguém que nos trouxe todas as
sentido. As pessoas, novas e velhas, crianças aos magotes, compa-    formas e tamanhos do Bem…um privilegio que se reserva a poucos…
reciam na sua roupa remendada, mas limpa. Muitos de chinelos
de enfiar o dedo, ou mesmo descalços sobre pedra batida. O nosso       O Amorim, esse estará feliz, a sorrir, outra vez, desta e doutras
capelão, do altar de bambu, não pôde deixar de sentir a Fé de toda   histórias, que circulam e circularão para sempre entre aqueles a
aquela gente, simples, a quem dava a comunhão. A emoção foi          quem dedicou a sua vida…
tanta que o fotógrafo apanhou o Padre Amorim, com uma lagrimi-
ta no olho. Foto que terá corrido o mundo… Escusado será dizer,                                                                                               Doc
que todos os marinheiros presentes sentiram o mesmo e até o fo-
tógrafo sentiu uma emoção profunda, da qual nunca se separará,
quando desta memória der conta…

   Lembro-me de ter pensado que, naquele dia, o nosso Amorim,
deu corpo à sua Fé, à sua vocação… exactamente na mesma me-
dida em que os médicos e enfermeiros, puderam, em Timor, dar
conta da sua verdadeira alma, da sua verdadeira missão…

   A bordo o Capelão Amorim desdobrava-se entre o Refeitório
das Praças e as Câmaras de Sargentos e Oficiais. Participou, nas
celebrações da Véspera de Natal e Missa na Manhã do dia de Na-
tal. Todos a uma só voz apreciaram a sua visita. O nosso Amorim
deixava a sua marca, por onde andou, quer pela chalaça públi-
ca sempre apropriada, quer pelo conselho privado, adequado a
cada alma…

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