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REVISTA DA ARMADA | 502
ESTÓRIAS 17
"SENHOR IMEDIATO!
NÓS VAMOS BUSCAR O RAPAZ."
Esta exclamação não diz nada, não faz sentido. Contudo, ainda Não vou descrever, porque não o saberia fazer, mas apenas di-
hoje, passados 65 anos, ela me ocorre com o mesmo efeito então zer que a baleeira ora desaparecia para tornar a aparecer, numa se-
produzido. Eu explico: quência arrepiante, de medo, de lágrimas que a chuva disfarçava.
A chegada à Sagres, o transbordo do doente, encharutado na sua
Açores, Ponta Delgada. Contratorpedeiro NRP Dão em comissão maca, o mesmo sofrimento no regresso, a chegada, a mesma pre-
de serviço. Era seu Comandante o CTEN Jerónimo Henriques Jorge e ocupação com o engatar nas talhas e, finalmente, o içar da baleeira
Imediato o 1TEN Alfredo de Oliveira Baptista, oficial muito dinâmico, com tal gana que os turcos estremeceram com o choque dos cader-
andar desenvolto, pelo que a guarnição o apodava de Fred Astaire. nais. O alívio.
É sabido que os imediatos fazem as guarnições e esta era uma boa
guarnição. Felizmente tudo acabou bem. O doente para a enfermaria, uns
abraços, umas palmadas fraternais, na verdadeira acepção da pala-
Corria o ano de 1950. Fins de Maio. Uma chamada urgente para ir- vra. Satisfação geral. Dever e missão cumpridos.
mos ao encontro da Sagres que se encontrava a cerca de quatrocen-
tas milhas para Sudoeste, em viagem de instrução de cadetes, e tinha Quem foi o patrão?, quem ia aos remos?, o proeiro? Os seus no-
a bordo um grumete que necessitava de urgente hospitalização. mes? Já se varreram da minha memória, mas os seus rostos, não.
Esses, tenho-os ainda bem presentes. Visivelmente eufórico, orgu-
E lá fomos ao seu encontro. Sob uma baixa pressão, o tempo apre- lhoso, muito comovido e incontido, proferiu o Imediato estas belas,
sentava-se muito feio, com vaga larga, cavada e chuva forte tocada a justas e inesquecíveis palavras dirigidas àqueles bravos: “Pudesse eu
vento de força 7 a 8, na escala de Beaufort. e para cada um de vocês mandaria erigir um monumento”. Pala-
vras que arrepiaram todos à sua volta.
O encontro fez-se por volta das 02h00. A Sagres estava já perto de
nós, por bombordo, a não mais de um quarto de milha. Estava em Sabe bem ouvir palavras certas no momento certo. Foi outra lição
árvore seca e, tal como nós, aproando à vaga. de humildade dada pelo Imediato à sua guarnição. Sem esquecer o
nosso Comandante, pela rápida decisão humanista, por acreditar
Tirando o pessoal de serviço às máquinas, caldeiras, centrais e nos seus marinheiros, e ainda a desapercebida acção dos homens do
ponte, a maioria da guarnição estava toda a bombordo agarrada aos leme e dos telégrafos, mantendo o navio nas melhores condições para
vergueiros da balaustrada e ao cabo de vaivém, indiferente à chuva as manobras ora efectuadas e com este desfecho feliz. Chegados a
intensa que a castigava e na expectativa de ver chegar o doente que Ponta Delgada foi o doente levado para o hospital.
a Sagres nos viria entregar.
Todos temos lido algo sobre fraternidade, solidariedade, camara-
Muitas comunicações pelos projectores de sinais e depois a notí- dagem e ficamos, julgamos nós, a saber o que isso quer dizer. Puro
cia, dada pelo Imediato, de que a Sagres não arriscava o transbordo engano. Esses atributos não passam do papel. A grande lição, a gran-
do doente, dadas as péssimas condições do tempo. de aula que foi dada, aliada à demonstrada naquela noite, não a li.
Foi real. Vivi-a. Porque só nos momentos difíceis se aprende a dis-
Desapontamento e preocupação totais. E agora? É então que um cernir estas diferenças.
marinheiro artilheiro, visivelmente agitado, exclama: “Senhor Ime-
diato! Nós vamos buscar o rapaz”. Por tudo isto, o meu “muito obrigado” à Marinha onde me fiz ho-
mem, pelo que vi e aprendi no contacto com valentes “Filhos” de
De um pulo, o Imediato subiu à ponte de onde, sem demora, todas as mães e de todas as “Escolas”, competentes, responsáveis,
trouxe um afirmativo e logo deu as ordens. Muita movimentação, honestos, camaradas, por ter navegado em todos os mares e pisado
apitos do Mestre do navio, vivióóóóóó… vivióóóóóó…, e num ins- todos os continentes habitáveis, pelo que sofri e, sobretudo, pelos
tante a baleeira estava guarnecida, por primeiros e segundos ma- bons momentos. Que saudades… do mar.
rinheiros, que aquilo não era da competência de grumetes, numa
voluntariedade de que só gente camarada é capaz. Não houve es- Teodoro Ferreira
colha, género: tu, tu e tu. Lição de solidariedade e de fraternidade 1TEN SG REF
que me ensinou a diferenciar logo ali, entre o que a respeito é dito
e escrito, banalidades, e o sentido real, o que é interiorizado para N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico.
todo o sempre.
Num ápice estavam os turcos fora e a baleeira a ser arriada, nos
cabos todos deram a mão, oficiais, sargentos e praças, num “todos
por um” e o apito do Mestre do navio a comandar a manobra. Ba-
leeira a bater na água, num sobe e desce assustador, o desengate
das talhas em simultâneo, pois se falhasse um dos gatos, ou à proa
ou à popa, eram todos despejados.
Corri para o projector, estabeleci o arco voltaico, abri o diafrag-
ma e do seu espelho de 90 cm saíram projectados o equivalente a
5 milhões de velas que rasgaram a noite… e fez-se dia.
28 DEZEMBRO 2015