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REVISTA DA ARMADA | 524


          ESTÓRIAS                                                                                         36


          ENTÃO, SR. ENGENHEIRO,


          QUANDO É QUE VOLTA PARA CÁ?




            sta passagem que vou descrever ocorreu em 1978, quatro anos   Pedi então para chamarem o electricista. Informaram que estava
         Edepois do 25 de Abril, trabalhava eu na Setenave, em Setúbal,   no Comando da Marinha. Com à-vontade, pedi então: – Podem, por
          como Chefe do Departamento de Conservação.          favor, chamar o electricista para vir aqui ao estaleiro, que eu gosta-
           Nessa altura, a empresa recebera do governo da Guiné-Bissau um   ria de falar com ele? Responderam-me que viria da parte da tarde
          pedido de Cooperação Técnica em que solicitava a reabilitação do   e, assim, à tarde apareceu o electricista. Pedi-lhe então: – Pode, por
          Estaleiro Naval, em Bissau, onde, à data da independência daquela   favor, verificar se a alimentação aos compressores está ligada na Cen-
          Província Ultramarina, se encontrava instalado o Serviço de Assis-  tral Eléctrica? (que eu conhecia bem). Passados alguns minutos, lá
          tência Oficinal (SAO) da Armada, que tantos e relevantes serviços   regressou dizendo simplesmente que já a tinha ligado.
          prestou às Marinhas de Guerra e Mercante durante a Administração   Qual representação teatral, estávamos somente os dois em palco
          Portuguesa.                                         seguidos, com alguma perplexidade, por todos os outros, agora aten-
           Na sequência de tão importante solicitação, a Administração da   tos espectadores!
          Setenave resolveu enviar a Bissau, antes de apresentar a pretendida
          proposta de cooperação, uma reduzida equipa multidisciplinar para   Instalações Navais de Bissau.
          avaliar, localmente, da situação do estaleiro bem como das necessi-
          dades do mesmo nas áreas Técnica, Pessoal e Finanças.                                                  Foto CFR REF Melo e Sousa
           O Dr. Costa Leal, na altura Presidente do Consellho de Administra-
          ção da Setenave, tendo tido conhecimento de que prestara serviço
          no SAO, quando na Armada, chamou-me e indagou-me se, da minha
          parte, existia qualquer objecção em integrar tal equipa. Respondi
          que não, e que até gostaria de participar em tal trabalho, onde pode-
          ria rever e recordar o que tinha conhecido tão bem há quatro anos.
          Fui então incluído naquela equipa, de quatro elementos.
           Sabíamos que, logo após a independência da Guiné-Bissau, o esta-
          leiro (ex-SAO) tinha celebrado um Acordo de Cooperação com uma
          empresa de pesca argelina, acordo já terminado quando da chegada
          da equipa da Setenave àquele país.
           O SAO tinha sido muito bem equipado, pela Armada, no que res-  Pedi-lhe então para fazer o favor de accionar o arrancador do com-
          peita a equipamento oficinal e ferramentaria.       pressor Nº 1. De forma espectacular, desanuviando toda a tensão
           Apercebi-me então, por ter conhecido antes, que os melhores equi-  entretanto provocada, o compressor arrancou lindamente, bem
          pamentos das oficinas tinham sido retirados, assim como a maioria   como os outros dois logo de seguida! Foi um ponto alto da nossa
          das ferramentas (provavelmente “nacionalizados” pela empresa de   visita.  O  equipamento  também  “colaborou”  no  espectáculo.  Ao
          pesca argelina). Mesmo assim verifiquei encontrarem-se em bom   longo de quatro anos de imobilização muita poeira se tinha acumu-
          estado as prateleiras, onde anteriormente estiveram os sobressalen-  lado sobre as enormes pás das ventoinhas de refrigeração. Quando
          tes dos motores fora de borda que faziam parte do apoio aos fuzilei-  os compressores arrancaram, as ventoinhas começaram a debitar
          ros. Sim, porque dos sobressalentes nem rasto.      uma poeirada enorme que, descendo o Plano, envolveu as centenas
           Durante a nossa visita às instalações, observei que algumas cente-  de homens desocupados que ali estavam, levantando-se todos em
          nas de operários estavam sentados no chão, no plano inclinado de   simultâneo; e, ainda desacordados e envoltos naquela nuvem poei-
          alagem, simplesmente observando-nos. Indagando a razão de tal   renta, começaram a bater palmas de alegria. Por fim, alguns aproxi-
          postura, fomos informados de que o pessoal estava desocupado pois   maram-se e, como se estivéssemos em período de serviço, pergunta-
          não havia ar comprimido para fazerem o tratamento dos cascos e a   ram-me: “Então, Sr. Engenheiro, quando é que volta para cá?”.
          sua intervenção era feita por meio de ferramentas pneumáticas.  O que senti, não pelo arranque das máquinas mas pelos sentimen-
           Esta situação causou-me alguma surpresa, porque pouco antes de   tos exteriorizados por aqueles homens que, num impulso caloroso,
          ter deixado o SAO, quatro anos antes, tinham sido instalados três   nos  rodearam,  transmitindo  uma  esperança  e  manifestando  de
          novos compressores de ar de grande capacidade. O chefe do pro-  forma expressiva uma gratidão, que interiorizei como saudade e res-
          jecto tinha sido o camarada Engº Costa Roque, que tinha na altura o   peito,  coíbo-me de descrever e guardei como uma das passagens
          cargo de Chefe de Operação do Estaleiro.            mais aconchegantes e gratas da minha vida.
           Os compressores, refrigerados a ar por ventoinhas de diâmetro   Pela minha parte, não considero ter tido qualquer mérito. Apenas e
          superior a um metro, estavam montados na parte superior do plano   simplesmente uma mínima acção de coordenação.
          inclinado e apresentavam-se, aparentemente, em bom estado.  O trabalho da equipa da Setenave de recolha de informação para
           Aproximei-me do compressor Nº 1 e foi fácil rodá-lo à mão. Accio-  elaboração da proposta de cooperação continuava a bom ritmo.
          nei então o arrancador, mas não obtive qualquer resultado!                                          
           Na altura não era suposto ou previsível qualquer elemento da equipa               Mário Rodrigues de Almeida
          portuguesa mexer no material, interrompendo a “visita guiada”, e                            CTEN EMQ REF
          senti que todos nos seguiam com curiosidade e expectativa!  N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico


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