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ESTÓRIAS 36
ENTÃO, SR. ENGENHEIRO,
QUANDO É QUE VOLTA PARA CÁ?
sta passagem que vou descrever ocorreu em 1978, quatro anos Pedi então para chamarem o electricista. Informaram que estava
Edepois do 25 de Abril, trabalhava eu na Setenave, em Setúbal, no Comando da Marinha. Com à-vontade, pedi então: – Podem, por
como Chefe do Departamento de Conservação. favor, chamar o electricista para vir aqui ao estaleiro, que eu gosta-
Nessa altura, a empresa recebera do governo da Guiné-Bissau um ria de falar com ele? Responderam-me que viria da parte da tarde
pedido de Cooperação Técnica em que solicitava a reabilitação do e, assim, à tarde apareceu o electricista. Pedi-lhe então: – Pode, por
Estaleiro Naval, em Bissau, onde, à data da independência daquela favor, verificar se a alimentação aos compressores está ligada na Cen-
Província Ultramarina, se encontrava instalado o Serviço de Assis- tral Eléctrica? (que eu conhecia bem). Passados alguns minutos, lá
tência Oficinal (SAO) da Armada, que tantos e relevantes serviços regressou dizendo simplesmente que já a tinha ligado.
prestou às Marinhas de Guerra e Mercante durante a Administração Qual representação teatral, estávamos somente os dois em palco
Portuguesa. seguidos, com alguma perplexidade, por todos os outros, agora aten-
Na sequência de tão importante solicitação, a Administração da tos espectadores!
Setenave resolveu enviar a Bissau, antes de apresentar a pretendida
proposta de cooperação, uma reduzida equipa multidisciplinar para Instalações Navais de Bissau.
avaliar, localmente, da situação do estaleiro bem como das necessi-
dades do mesmo nas áreas Técnica, Pessoal e Finanças. Foto CFR REF Melo e Sousa
O Dr. Costa Leal, na altura Presidente do Consellho de Administra-
ção da Setenave, tendo tido conhecimento de que prestara serviço
no SAO, quando na Armada, chamou-me e indagou-me se, da minha
parte, existia qualquer objecção em integrar tal equipa. Respondi
que não, e que até gostaria de participar em tal trabalho, onde pode-
ria rever e recordar o que tinha conhecido tão bem há quatro anos.
Fui então incluído naquela equipa, de quatro elementos.
Sabíamos que, logo após a independência da Guiné-Bissau, o esta-
leiro (ex-SAO) tinha celebrado um Acordo de Cooperação com uma
empresa de pesca argelina, acordo já terminado quando da chegada
da equipa da Setenave àquele país.
O SAO tinha sido muito bem equipado, pela Armada, no que res- Pedi-lhe então para fazer o favor de accionar o arrancador do com-
peita a equipamento oficinal e ferramentaria. pressor Nº 1. De forma espectacular, desanuviando toda a tensão
Apercebi-me então, por ter conhecido antes, que os melhores equi- entretanto provocada, o compressor arrancou lindamente, bem
pamentos das oficinas tinham sido retirados, assim como a maioria como os outros dois logo de seguida! Foi um ponto alto da nossa
das ferramentas (provavelmente “nacionalizados” pela empresa de visita. O equipamento também “colaborou” no espectáculo. Ao
pesca argelina). Mesmo assim verifiquei encontrarem-se em bom longo de quatro anos de imobilização muita poeira se tinha acumu-
estado as prateleiras, onde anteriormente estiveram os sobressalen- lado sobre as enormes pás das ventoinhas de refrigeração. Quando
tes dos motores fora de borda que faziam parte do apoio aos fuzilei- os compressores arrancaram, as ventoinhas começaram a debitar
ros. Sim, porque dos sobressalentes nem rasto. uma poeirada enorme que, descendo o Plano, envolveu as centenas
Durante a nossa visita às instalações, observei que algumas cente- de homens desocupados que ali estavam, levantando-se todos em
nas de operários estavam sentados no chão, no plano inclinado de simultâneo; e, ainda desacordados e envoltos naquela nuvem poei-
alagem, simplesmente observando-nos. Indagando a razão de tal renta, começaram a bater palmas de alegria. Por fim, alguns aproxi-
postura, fomos informados de que o pessoal estava desocupado pois maram-se e, como se estivéssemos em período de serviço, pergunta-
não havia ar comprimido para fazerem o tratamento dos cascos e a ram-me: “Então, Sr. Engenheiro, quando é que volta para cá?”.
sua intervenção era feita por meio de ferramentas pneumáticas. O que senti, não pelo arranque das máquinas mas pelos sentimen-
Esta situação causou-me alguma surpresa, porque pouco antes de tos exteriorizados por aqueles homens que, num impulso caloroso,
ter deixado o SAO, quatro anos antes, tinham sido instalados três nos rodearam, transmitindo uma esperança e manifestando de
novos compressores de ar de grande capacidade. O chefe do pro- forma expressiva uma gratidão, que interiorizei como saudade e res-
jecto tinha sido o camarada Engº Costa Roque, que tinha na altura o peito, coíbo-me de descrever e guardei como uma das passagens
cargo de Chefe de Operação do Estaleiro. mais aconchegantes e gratas da minha vida.
Os compressores, refrigerados a ar por ventoinhas de diâmetro Pela minha parte, não considero ter tido qualquer mérito. Apenas e
superior a um metro, estavam montados na parte superior do plano simplesmente uma mínima acção de coordenação.
inclinado e apresentavam-se, aparentemente, em bom estado. O trabalho da equipa da Setenave de recolha de informação para
Aproximei-me do compressor Nº 1 e foi fácil rodá-lo à mão. Accio- elaboração da proposta de cooperação continuava a bom ritmo.
nei então o arrancador, mas não obtive qualquer resultado!
Na altura não era suposto ou previsível qualquer elemento da equipa Mário Rodrigues de Almeida
portuguesa mexer no material, interrompendo a “visita guiada”, e CTEN EMQ REF
senti que todos nos seguiam com curiosidade e expectativa! N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico
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