Page 126 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS  DE  MARINHEIROS



           70-Caminhos cruzados






               Uma das recordações mais agra-  outro  recordou  um  caso  insólito,  que  os  absorvera  lotaI mente  con-
            dá.veis que guardo dos meus tempos  ocorrido em Usboa, aquando do en·  sentiu que olhassem, com  vagar, à
            de  tenente  embarcado  prende-se  lace de outro oficial.           sua volla. E concluíram, surpresos,
            com a vivência das câmaras dos na-   Fora o caso que, após a cerimó-  que  dos  múltiplos  convidados  não
            vios. Ali se faziam as horas das refei-  nia da igreja, quatro tenentes entra·  conheciam  ninguém.  Intrigados, fo·
            ções  e  se  passavam  as  de  lazer  ram  no automóvel,  pertença de  um  ram dar uma volta pelas outras me-
            quando  a  navegar ou  quando,  nos  deles, para seguirem para casa dos  sas, e a mesma impressão persistiu.
            fundeadouros,  as circunstâncias do  pais da noiva.  onde  se  realizaria  o  Fardas de Marinha eram apenas as
            serviço  não  consentiam  as  idas  a  copo-d'água.                 suas.  Ao  mesmo  tempo,  conven-
            terra.                               Ignorando a direcçâo exacla, não  ciam·se, pelo  modo estranho como
               Ali  se  conversava  longamente,  haveria  dificuldades:  era  ingressar,  eram olhados, que também os oulros
            se ouvia música gravada, se liam os  apenas, no cortejo que se formaria à  se interrogavam sobre a sua identi-
            livros  predilectos a, quantas  vezes,  saída da igreja, e seguir, assim inte·  dade. Numa  dúvida crescente, pro·
            nos  entretínhamos em  bridges con-  grados, até à morada desejada.   curaram  os  noivos.  E  ao  vê-los,  a
            troversos ou em demoradas partidas   De  salientar, desde já,  que,  por  suspeita, que já os assaltara, conver·
            de xadrez.                        demoras  não  averiguadas  -  tràdi-  teu-se em certeza: tinham vindo pa-
               Por  vezes,  na  troca  de  ideias,  cionalmente,  a  culpa  é  sempre  da  rar a um casamento que nâo era o do
            rompiam polémicas acesas. Nos tó-  noiva - a cerimónia se verificou com  camarada.
            picos  abordados nunca  as opiniões  grande  atraso.  Daí  que  um  apetite   Sucedera, apenas, que na confu·
            formuladas coincidiam.  E  era então  voraz,  tão  próprio daquelas  idades,  são do trânsito se tinham incorpora·
            um  desfiar  intérmino  de  argumen-  consumisse  de  há  muito  as  entra-  do  no cortejo  de  outro  casamento.
            tos  e  contra-argumentos  que, rara-  nhas sôfregas dos rapazes.   Com  mil  desculpas  aos  donos  da
            mente,  levavam  a  opiniões  unAni·   Os noivos estavam bem relacio-  casa - não sem antes terem brinda-
            mes.                              nados.  a  avaliar  pela  multidão  dos  do aos noivos -  logo, pelo telefone,
               De assinalar que os laços de ca·  convidados.  Assim  se  formou  um  localizaram  o  seu  verdadeiro desti·
            maradagem  que  uniam  os  oficiais  longo cortejo, através da cidade, cor·  no. E, uma vez aí, com o apetite re-
            nunca  se  ressentiam  do  calor  vivo  tado aqui e além pelo gesto capricho·  novado pelas comoções do inciden-
            das discussões. Um dito de espírito,  so dos sinaleiros -  não imperando,  te,  fizeram  as  honras  devidas  ao
            deste ou daquele, desarmava, muita  ainda,  naquele tempo,  o  automatis·  novo copo-d'água.
            vez,  o tom  mais duro de uma argu·  mo cego dos semáforos.            A autenticidade do gracioso epi-
            mentação mais séria.                 Finalmente,  a  caravana  chegou  sódio fez sorrir os oficiais. E logo um
               Tantas  das  histórias  que  lenho  ao destino. Os convidados subiram  deles  recordou outro caso, este de·
            contado aqui foram ouvidas, pela pri-  então a larga escadaria da casa apa-  certo bem mais insólito do que o que
            meira vez, nesse saudoso  convivio  laçada,  depois  de  atravessarem  o  se  contara. Também, uma vez, ou-
            das câmaras dos navios.           iardim  envolvente, matizado  de  fio·  Iros  camaradas, convidados  de  um
               E não resisto, hoje, à tentação de  res que rompiam de entre relvas ver-  casamento, se transviaram nas víeis·
            rememorar uma conversa autêntica  dejantes.                         situdes do trânsito citadino, indo en-
            como exemplo típico de como a inter-  Mesas  pejadas  de  iguarias  es-  grossar, sem querer, um cortejo es·
            venção  de vários oficiais da guarni·  tendiam-se  pelos  salões,  onde ,  Iranho.  Só  que,  dessa  vez, não  se
            ção de um navio, fortuitamente reuni-  quando chegaram os oficiais, já con-  tratava  de  um  casamento,  mas  de
            dos por exigências do serviço, com·  vidados se alinhavam ávidos.   um funeral. Foram parar ao cemité·
            pletaram  entre  si, casualmente, um   Nos primeiros momentos, os le·  rio ..
            mesmo assunto.                    nentes nada mais viram que não fos-  De  novo  um  sorriso  perpassou
               O navio fundeara na costa algar·  se  a  tentação  dos pratos dos  frios.  pelo presentes. E, agora, um terceiro
            via, num período de exercícios, mas  densamente  cheios,  numa  provo-  tenente, a propósito, recordou  uma
            a sua largada.  prevista para de ma-  cação a apetites demorados.   cena  de revista que vira no  Parque
           drugada, interditara a concessão de   Depois  vieram  os  quentes,  que  Mayer, anos atrás.
            licenças para terra. E, assim, os ofi-  eles atacaram bravamente. E a inter·   Um cocheiro surgia no palco, de
           ciais, após o jantar, continuaram na  valos foram saboreando também as  sobrecasaca, botas de  cano e  cha·
           câmara,  em  conversa  amena.  Foi  bebidas  que  manavam,  copiosas,  péu  alto,  brandindo  no  ar,  ritmica-
           quando um deles referiu, como novi-  das  garrafas empunhadas  por cria·  mente,  um  longo chicote.  Só que a
           dade.  o  próximo  casamento  de  um  dos solicitas.                 vestimenta, de alio a baixo, era, de
           camarada  de  todos  conhecido.       Quando  entraram,  finalmente,  um  lado,  toda  branca  e,  do  oulro,
            logo, por associação de ideias, um  nos doces, já  o ritmo de deglutição  completamente  preta, numa simbo·

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