Page 78 - Revista da Armada
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Retrospectiva (10)
A história da Marinha não é feita
só de batalhas navais, viagens, •
encalhes, naufrágios ... é feita também
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de pequenas coisas, como estas.
om virtudes e defeitos, como toda a gente, o vice-
-almirante JOtio Francisco Fialho era uma figura
C tfpica na Marinha.
Vivíamos os anos 60 e ele era director-geral de Mari-
nha. Geria cntão, com devoção e competência, uma vaSla
área do ramoeivi! do Ministério. abrangendo as Marinhas
de Comércio, Pescas e de Recreio. as capitanias dos por-
Ias. variadas comissões ligadas a actividades do mar. as-
suntos de Direito Marítimo - Internacional e Público- ,
etc. Eu em então comandante d •• Polícia Marítima do
Porlo de Lisboa, seu subordinado através do respectivo
capitão do porlo, mas tratando alguns assuntos directa-
mente com ele.
Homem simpático, afável. bem humorado e inteligen-
te. encarando a vida com grande realismo. breve me tor-
nei seu amigo a admirador. Possuía, em alto grau , uma
qualidade que eu sempre apreciei muito nas pessOlls, a
bondade. Várias vezes o vi preocupado e até comovido
com situações de aOição de camaradas que lhe iam pedir
lugares melhor remunerados. enganando-o algumas
vezes para os obter. OalmirallleJQijQ Fral/cisco Fiallro.
Certo dia em que fui a despacho encontrei-o muito de-
primido e perguntei-lhe se não se sentia bem ou tinha al- estranhasse nem lhe levasse a mal, pois aquilo safa-lhe
gum problema a preocupá-lo. Ele explicou que tinha ali naturalmente, quase sem dar por isso ...
estado um oficial. cujo nome indicou. pedindo uma capi- O armador fez um sorriso incrédulo. afirmando não
tania a que não tinha direito, argumentando com a sua si- acreditar nessa possibilidade. dada a sua idade, pratica-
tuação familiar. acerca da qual pintara um quadro muito mente a do almirante, dada a sua categoria. e ainda por-
negro. que era a primeira vez que se viam ... enfim, julg<lva isso
- Achas que eu podia deixar de satisfazer o seu pedi- impossível!
do?-e. sem esperar resposta: -Eu sei que vocés v.io di- Então o chefe de gabinete levou-o à presença do almi-
zer mal de mim ... Mas nâo tive coragem de lhe dizer que rante , apresentou-o e saiu, pedindo a lodos os santos da
não ... Coitado do rapaz! sua devoção que tudo corresse bem e não surgisse qual-
Eu não disse nada. Sabia que ele fora enganado. mas quer quiproquó.
também não livecoragem de lho dizer. Pelo tempo que ficaram a conversare pelo 10m das vo-
Alegre e descontraído. tinha uma particularidade que zes que lhe chegavam através du poria, apenas encostada,
as pessoas interpretavam de maneiras diferentes, umas parecia-lhe que ia ludo às mil maravilhas. Talvez, o ulmi-
para bem. outras para mal. Era a de tratar. normalmente. rante. não tivesse usado desta vezo «tu» ..
todas as pessoas por tu. E digo normalmente. porque ha- A cerla altura o senhor suiu. sendo acompanhado até
via. com certeza. excepções. Não havia da sua parte falta à porta pelo almirante que exibia o seu COSlUmado ar pra-
de consideraçflo para com os seus interlocutores. Era zenteiro.
assim .. O chefe de gabinete espcrllva ansiosamente as im-
Um dia. marcada que fora a respectiva audiência. pressões do armador, o qual. adivinhando-lhe os pensa-
apresentou-se ao seu chefe de gabinete um armador mui- mentos lhe disse. em ar de despedida:
to importante e. t"lvez por isso. muito empenigado tam- - O seu almirante é um homem simpaliquíssimo. É
bém. Antes de o introduzir junto do almirante. o chefe verdade que começou u Iratar-me por Vossa Excelência
de gabinete, numa longa conversa cheia de rodeios e de mas acabou. como o senhor me tinha avisado, no «tu» ...
cautelas. pô-lo ao corrente daquele hábito do seu supe- Mas, quer saber uma coisu? Nflo s6 me não zanguei, como
rior, pedindo-lhe. se o caso viesse a verificar-se. que mio até goslei!
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