Page 334 - Revista da Armada
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só temos um processo: quando ele mergulhar no sono   defensivas contra a  serpente assassina e, se bem as
             vazamo-lhe os olhos com um espeto em brasa, e  ele   imaginou,  mais depressa meteu mãos a  elas.
             já não poderá  apanhar-nos.~                          Procurando pela praia, encontrou por ati em mono
                Isto  assente,  aguardaram  a  chegada  do  insular   tlculos paus, galhos, restos de troncos, e. com tianas
             hediondo, mas foi ainda o último suspiro de mais um   da floresta, não lhe foi difícil construir à volta do corpo
             mercador, que acabou no espeto e no bucho do mos-  casulo grotesco. mas bem largo, que não coubesse nas
             trengo. Depois, o  roncar do sono de quem não deve   fauces  escancaradas  da  serpente.  Sindbad  ficou ,
             nada a Deus. Sindbad e mais três companheiros aque-  assim, como que dentro duma gaiola de ramos bifur-
             ceram então dois pesados e compridos espetos até a   cados entrelaçados com galhos excedentes e agressi·
             ponta ficar ao rubro e, segurando-os pela extremidade   vos  mais  largos  que a  bocarra  da  repelente cobra.
             menos quente, cravaram-nos a  fundo  nas órbitas do   Quando esta veio, à noite, em demanda da ceia. bem
             gigante negro. O urro que se ouviu foi de fazer tremer   se esforçou e tentou abrir as mandíbulas para além dos
             a  ilha.  Pondo-se  de pé,  de  um  salto,  o  gigante  ora   limites do emaranhado vegetal, mas em vão. O pavor
             estendia as mãos esbracejando no espaço, ora agar-  de Sindbad fê-lo arrepiar-se com o fétido bafo do réptil
             rava a  contorcida carantonha, sofrendo de dor, e  de   exalado perto da sua cara, mas foi o mais que aconte-
             nada ver. Os mercadores, deitando-se no chão, esca-  ceu.  Manhã  cedo,  a  serpente  desistiu  e  retirou-se
             param  às manápulas  tacteantes do  brutamontes,  e   bufando de furor.
             este  acabou  por  encontrar  a  porta  de  saída  e   Ao longe,  no mar,  Sindbad avistou um  navio de
             embrenhar-se à toa e aos berros pelos matos da ilha.   pano largo, velas prenhes, e, desembaraçando-se do
                Livres  da  monstruosa  criatura,  os  mercadores   casulo de paus em que se acoitara, gesticulou deses-
             dirigiram-se para a  praia, julgando-~e a  salvo. Junta-  peradamente agitando no ar o turbante amarrado a um
             ram algumas tábuas a que deram um jeito de jangada.   galho de árvore. O barco manobrou, virando de bordo,
             Saltaram para cima,  e  remavam já a  afastar da ilha   e fazendo-se para terra, sinal de ter avistado o chama-
             quando o gigante voltou a aparecer, guiado agora por   mento.  Sindbad  foi  recolhido.  deram·lhe  roupas,
             uma gigante companheira, ainda mais asquerosa do   comida e uma deliciosa água fresca. tudo contribuindo
             que ele. E ambos arremessavam calhaus sobre a frágil   para o sossegar de corpo e  alma, do que deu graças
             arquitectura  de  tábuas  dos  mercadores,  acertando   a  Alá.
             alguns em cheio, com a  consequente morte de mais     Navegando com bom tempo, em breve escalaram
             alguns companheiros, escapando apenas,  por sorte,   uma ilha chamada Salaata, onde os mercadores desem-
             Sindbad  e  outros  dois.  O  que  restava  da  jangada   barcaram a fazer o seu negócio. Como ficasse a bordo
             conseguira,  finalmente,  alcançar  distAncia  onde  as   apenas Sindbad, o capitão condoeu-se do seu infortú-
             pedras brutas já  não chegavam.                    nio e  disse-lhe:
                Ao cabo de dois dias de mar, um tanto ao calhas,   IIOuvel Quero ser bom contigo, pobre estrangeiro.
             os  três sobreviventes da ilha tenebrosa alcançaram   para que um dia, na tua terra, te recordes de mim e
             terra, outra ilha onde desembarcaram e  se alimenta-  me bendigas. Em tempos viajou connosco um merca-
             ram  de frutos,  para escaparem de morte pela fome.   dor que se perdeu numa ilha que escalámos. Nunca
             Fazendo-se noite, subiram a uma árvore e ai dormiram,   mais tivemos notícias dele. Como temos ainda a bordo
                De manhã, o despertar foi um tanto inusitado, pois   os seus fardos, vou dar·tos para os comerciares. Reti-
             serpente enorme, tão grossa como a árvore em que se   rarás os teus lucros, e  o dinheiro que fizeres irá para
             tinham acoitado, bafejava ruidosa, dardejando sobre   a farnilia, que vive em Bagdade, se o próprio não tiver
             eles  olhos  faiscantes .  E  em  menos  dum  ápice,  a   também lá  regressado.»
             bocarra enorme, desmesuradamente aberta, caía como    KAssim  farei, com toda a  honestidade -  respon-
             ariete sobre um dos companheiros, de que se ouviu   deu Sindbad. E em que nome devo declarar as merca-
             apenas o  estalar dos ossos ao desaparecer do corpo   dorias?»
             na gorja do réptil. O pânico paratizou os dois sobrevi-  "0 nome do comerciante era Sindbad Marinheiro"
             ventes, mas a monstruosa cobra deixou-se escorregar,   -  respondeu o  capitão.
             sonolenta, e retirou-se, com certeza para a modorra da   uMas ... eu sou Sindbad Marinheiroh! - respondeu
             digestão. Sindbad e o último companheiro desceram,   este cheio de admiração. IISOU eu o Sindbad Marinhei-
             apavorados, procuraram frutos e água fresca, e à noite   ro, capitão! Olhai·me bem.» E olhando-se mutuamente
             escolheram, longe do primeiro sítio, árvore muito mais   com  mais  atenção,  a  tentarem  reconhecer  feições,
             alta.  a  oferecer mais garantido refúgio.         Sindbad contou trechos da viagem, e  como adorme·
                Era madrugada,  porém, quandO um restalhar de   cera junto da fonte,  para só acordar quando o  navio
             ramos partidos os sobressaltou, e, antes que tivessem   já ia longe. O capitão, por sua vez, já o reconhecia tam-
             podido esboçar um gesto de defesa, a  serpente abo-  bém. E vindo a bordo alguns mercadores buscar mais
             canhou o que ficava mais a  jeito - o  último compa-  fazendas, houve um que exclamou: l!Por Alál Lembrais-
             nheiro vivo de Sindbad. Este, transido, só desceu da   -vos de vos ter contado de um homem que se amarrara
             árvore quando era já dia claro, disposto a  pOr termo   a um quarto de carneiro e fora transportado por uma
            à  vida de uma forma que fosse menos horrorosa que   ave chamada roc, ou abutre das rochas, no vale dos
            a  de  ser  assado  num  espeto  e  saboreado  por  um   diamantes? Pois é este que aqui está! Sindbad Mari-
            gigante. ou sentir os ossos a quebrarem-se nas goelas   nheiroh! - e o mercador abraçou efusivamente Sindbad,
            dum réptil monstruoso. Em baixo, porém, com inspi-  lembrando ainda com gratidão 08 belos diamantes que
            ração de Alá, e  o  respeito que lhe merecia a  própria   este lhe dera de presente.
            alma,  Sindbad  decidiu-se  a  experimentar  medidas   uBendito seja Alá. que propiciou este nosso resn-

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