Page 337 - Revista da Armada
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De ,ROSINHA, MINHA CANOA, (1968)


              UM  RIO  DE JESUS CRISTO      Millha mOi/eim está gasra,  lula aguellla mais.   li Oracó picou fumo de  corrIa  'UI  milo
                                               -  Vamos falar de  atl/ras  coisas.  Essa   e  ellrolou a  melll 110  palhlt lle milho.  Fogo
            Noitiu/w  já fria  er(l  começo  de  Verdo   com'usa dói.         queimollll ponlll e /U11l0/1  goSlOsO.  olhO/u/o
          gra/Ule.  A  lenha  da praia jd del'ia  ser em   - Ndo.  Temas  que  resalvu isso  hoje,   a  céu.
          maior  qlwl1Ii,/ade.  &Jgo  elllraria  Maio.   sendo  ...              -  Você se lembra quonllo, faz.  I/IIS  dois
          depois Junho viria. gelado lias madrugadas,   - Melhor eu  ti' contar lIma  história ..   anos eu fui até Leopoldinll, fiO iJl1rco de Leu-
          depois Julho,  que seria frio duranle  /Ollo  u   -  MlIis  tarde.  amigo.   TUndo  Vilas Boas? Pois bem, (Iconteceu U/110
          noiu>,  Como se COSTUmava dizer:  (I forra ,lo   Call1ram-se  um pouco.   coisa que nunca  le comei.
         frio do Verdo.  Desde a boquinha da noile até   Rosillha  illsistiu:    -  Pela  cara  safada  que  vacé  faz,  li
          ao  nascer do  Sol,  (I  corpo  quase  que  pro-  - EslOu  velha, li Oracó.  Velha e pesa-  Orocó,  del'e ter lIIulher  no meio.
          curuI"Q  refúgio  lias  brasas  (Ia  foglu!ira.   da.  Pensa que niJo I'ejo quando I'oci viaja e   -  Tínml,  sim.
            Zé Oracá pensava essas coisas,  deitado   passa  a  vida  tirando  água  do  meu fundo?   Riu.  Btlforou.  Foi  col/tam/o.
          IUI praia, '-endo a noite Ol'(mçar,  Metia a miJo   Vejo IIIdo.  Depois, nOo quero ficar como as   - O sol esrU\'Q quente que do(a fiOS olhos
          na areiajininha efica~'a peneirando. Sorriu.   outras  calloas,  canoas  parallticas jogadas   e suspendia as árvores dos estirões do rio.
          Lembrou-se  de  que,  quando  era  menino  e   sobre a areia, sen'indo de cocho para os ani-  Nllo rifl}/ll l'elllO fiem nada.  O maIOr do centro
          estudal'o na cidade. nos colégios de padres.   mais.  Sendo lambida pelos cal'lIlos,  cabras,   sacudia tomo o barco, que davll coceira nos
          o  exemplo  que  davam  da  Eternidade  era   boi  e  cachorro.  É  demais  de  triste ..   abas do nariz. Nessa hora lodo o mUlldo pro-
          assim: .. Se um pombo.  de  mil em mil anos.   -  Que  é  que  você  quer  que  eu  faça?   cural'Q um canrinho de sombra para esquecer
          l'lesse  à  Terra  e  levasse  um  grlJ01.inho de   - Aqllilo que já pedi mais de  uma vez.   o tempo.  O {ntlio cajabi Quá, que Leonardo
          areia de cada vez. qumuJo se gastasse a areia   - Mas  Rosinha! Faz  fOmos  anos que a   IfOllXera l/O Xingu por causa de mna briga,
          do mundo inteiro a Eternidade ainda estaria   gente  labuta  jUflto.  Quantas  I'ezes  li  gente   estal'a  pilO/ando  o  barco,  com  os  olhos
                                            paflgolou por esse rido amigo! Como é  que
          começando».  Mas que besteira, Deus do Céu.'                        parados de  Eternidade ..
          Onde já se viu um pombo com uma desgra-  vou  possar sem  vacê?        Eu eSlal'O encostado numa poli/a e cachi-
          çada de  uma  vida tao comprida? Sorriu de   - Só por isso? Eu já disse que na aldeia   101'0: o toque-toque do mOlor parecia fUlI'egar
          no\·o.                            de Saflta  ISllbel,  Idiarrnre quer vender uma   110 meu corpo e Ililo no rio.  Qual/do acabasse
            Amanhã, ames da curva do meio-dia (isso   canoa igua/z.inha a mim.  Do jeito que vacé   a viagem, a geme ia passar I'ários dias sen-
          porque o  Sol de agora em diante nlJo  iria a   gos/O ...           rindo o  abalo em  qualquer parte.
          pino)  avistaria a  barreira  de Pu/ra.  Tinha   Zé  Oracó  quase  engaliu  a  orvalho  dos   Quá, pra quem os brancos tiflham dado
          uma porçlJo de gente para quem dar todo o   olhos.                  o nome CrisMo de Cirilo,  mas que lIillguém
          peixe que pescara e salgara.  Iria guardar um   Rosinha  nilo queria parar:   acertllva e chamava de Ciliro, deu umll Chll-
          pouco para ele  e  o  reslO  distribuiria  pelas   - Uma tarde, quando o pôr do Sol th-er   IIUJdo por Leonardo, que logo apareceu, com
          {ndias  \'Iu\'as e  crianças.     descendo como a arara I'ennelha de que tanto   a testa preocupado, sempre pensam/o fluma
            A miJo parou com a última peneirada de   você gOSIa, me lel'e para a praia brll/lcll, me   encrenca  qualquer do  maIOr.
          areia.  Entdo,  teria que falar com o doutor?   suspeTldll.  na  areia  e  sem  lIinguém  ver me   OUro indicou com.  a cabeça a curm do
          Se bem que nado sentisse. a nlJo ser uma mga   queime.  Depois se lIfasu um pouco, porque   ria:
                                            flOO  quero que você me veja desllparecer.  Só
          incomodação  no  ombro  direito  quando  o                             - SIlo  Pedro tá  chegando.
          VerlJo apertava. Mas aquilo nlJo era caso de   o  céu  e a  noite que eSfOrdo  chegando.  E o   Aquele Ol-isO  despertou  a  humanidade.
          médico.  Bastava uma massagem de  óleo de   velllo da noite vai lel'ar minhas cil/zas para   Todo o  mUlldo queria  comprar coisas /Mra
          boto esquemado na  luz.  do candeeiro.   onde ninguém  ~'ai saber,  para  alimentar a   enriquecer  o  estôlnago  em  Silo  Pedro.  A
            Que da\'a  tristeza  pensar encontrar um   terra  e fazer  nOI'as  árvores.   comida  de  bordo  andava  monólOna  e
          doutor  da  cidade,  dava.  Ndo  premuNa   - Pare com isso, Rosinha! Sel/ilo, quan-  resumida.
          regressar para uma cidade: nunca! ... Qual-  do for assar wlla beirinha de carne 110 e.lpeto,   Fiquei com  I'ol/tade de rir.  De del/tro do
          quer que  ela fosse!  Entretanto,  um homem   "em vou [XX/er  eTlgolir.   camarote,  por sillal  o  único,  as  mulheres
          que se arred(J\'Q  de lá para ir ver a doença   - Nilo,  Zé  OroCÓ.  t hoje ou nunca.  E   começaram a botar as cabeças defora. enfiar
          devia su muilO  bom.              você  )'Qi  me prometer.          a  miJo  no rio,  molhar a preguiça do sono e
            Sentou-se.  Soprou o fogo e olhou as letras   -  Mas  Rosinha ...   pentear os carapinhas.  Desgraçada desgraça
          descascadas de Rosinha.              - Já disse  que ndo quero ser cocho de   era ser mulher e  I·jojar numa montaria com
                                            animal.  Vacê  promete?
            -  'Tás  triste,  bichinho?                                       homem..  As pobres  vinham  enfiados  IOda  a
                                               Zé Oracó foi pra lá,  veio pra cá, lorceu
            A  canoa  soltou  um  grande sus.,,;ro.  Zé                       viagem  naquele pequeno camarote.  De vez
                                            os dedos,  enfiou os pés descalços l/ll areia,
          Orocó InaIllIOU:  lá  estam ela de pé de landi                      em.  qua"do  os  enguiços  do  barco  lIpare-
                                            para COIII  o frio  dela afugentar a  angústia.
          de novo.                                                            ciam....  Precisal'a  homem  pular  nu  paro
                                            NlJo  adiantOl'Q  discutir com Rosinha.
            - Eu  também,  Rosinha.  Porque,  muito                           desencalhnr o barco, pronto! ... Fechavam as
                                               - Prometo, mas eu I'OU sofrer pra burro.
          ndo sei,  e  se sei prefiro 11110  me lembrar.                      pobres dentro  do  camarote,  com  a  jallela
                                               -  Tudo  passa.
            - Xengo-delengo-tengo ...  Eu sei.                                corrida  sem  deixar um pinguinha de  \'enlO
            - EIIMo fale  logo.                            *                  naquele  calor  todo.  Oll/ra  vez,  o  malar
            - É aquilo.                                                       necessitOl'a parar numa praia,  e pronto! ...
            - De  novo,  Rosillha?             Café  tornado  belll  quentinho.  Corpo   Sá  se  \·ia mulherolla  correlllJo pelas beiras
            - Ndo mmos brigar hoje. Mas \'acê bem   embuçado, belll perto da coivara.  E a noite   do  sariJo.  ellfiando-se  no  InalO  para  as
          me pudill  prometer.              Ião  escura,  que  as  eSlfe/as  tillhalll  I'irado   necessidades.  com  medo  que  nl10  desse
            - Mas,  por qllé?               farinheiro.                       tempo, porque IIUlri'lheiro Ilda pellsllnessas
            -  ESlOu  ficando  I'elha  e  imprestál'el.   - Hoje,  Rosin}/ll,  vau te comar ulna his-  coisaS.
          Estou cheia lle buracos.          tória que l'Oei  Tlunca  ouviu.      Pelos pratos de  comida distribuldos  fiO
            - Na iJl1rreira  I'OU  fazer uma  estopada   -  Tem  «era  uma  I·ez."?   camarote de)'ia ser u/llas catorze pessoas lá
          com  breu,  em  regra.               ~ Dessa  I'ez,  não.           dentro.  sem CQnlllr  as  crianças.  Liberdade
            -NOo adiall/a, Zé OrOl..-6.  Você tapa um   - Pena. porque as histórias dos homens   para elas  só  I'Ín}w  110  praiu.  ao  alloitecer,
          buraco  aqui  e  logo  do  lado se abre  outro.   SilO mais bonitas quO/ulo telll «era UI/lO vez .....   para  hora do  sono,  em  rolla  da  fogueira.
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