Page 143 - Revista da Armada
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Alma de Mestre
Alma de Mestre
lma-de-mestre!... Naquela tarde, olhando enternecida- atleta, havia levado de comer à nossa gentil companheira de uns
mente as primeiras radiações de um sol que soubera dissi- momentos, “peixe ou alpista, aquilo de que ela gostar mais” –
Apar pesadas nuvens tempestuosas, demos com uma ave- dizia-nos ele, depois!...
zinha saltitando alegre e confiada no lais de Estibordo da Idéa do João, que estará, afinal, no espírito e no sentimento de
“grande”. qualquer homem do mar.
Os seus movimentos ágeis e graciosos atraíram-nos logo o Por isso a “alma-de-mestre” se nos entregou tão confiada-
olhar, enlevaram-nos a alma de um doce prazer, ante essa “rea- mente, naquele dia em que teve a fortuna de nos encontrar na
lidade” de mais um ser vivo a compartilhar do cativeiro que vo- sua longa caminhada!...
luntariamente aceitámos...
Querida avezinha!... Viera dos confins de um horizonte ***
longínquo, correra sobre vagas alterosas ou galgara longas planí-
cies azuladas a que o vento não dava uma crispação, apenas Alma-de-mestre!... Porquê, esta poética designação dada a
para quebrar o fio dos nossos uma pobre ave que, nos
pensamentos dolorosos, oceanos infindos, se com-
prendendo-nos o espírito na praz na companhia do
grandeza incrível da sua fra- mareante?
gilidade... Uma “alma” que voa,
Donde veio? Para onde irá que adeja nos espaços, que
a pobre caminheira do espaço não teme as tempestades
que parece ignorar a maldade nem os navios!
dos homens e assim ousa Que mundo de pensa-
afrontá-los no engenho pavo- mentos, que ideias se nos
roso que eles criaram para a associaram na mente, ao
guerra e para a destruição? ouvir esse nome estranho,
Inconsciente ou desde- pela primeira vez! Um
nhosa, hei-la agora, ali à beira barco naufragado após luta
de um abismo que não teme, cruenta com os elementos
a equilibrar-se ousadamente lançados em refrega tre-
numa das patinhas e a desdo- menda, a tripulação, con-
brar preguiçosamente o leque junto de energias indomá-
maravilhoso das suas asas!... veis e de uma Fé que nunca
Não vê a gentil criaturinha esmorece, entregue de novo
que vinte rostos duros e enér- à alegria de viver, salva,
gicos a espiam, seguem gulo- apesar de tudo, pela perí-
samente os seus requebros e cia, pelo espantoso heroís-
as suas donairosas maneiras mo do seu Guia, do seu
e... e pasmam ao vê-la escon- Mestre que, num gesto trá-
der a cabecita ligeira sob a asa gico de beleza e de sacri-
protectora?!... fício, se deixou afundar
Silêncio! Tréguas à conversa com o desconjuntado casco
e à manobra! O pequenino que tanto amara!
ser entregou-se-nos confiado, adormeceu entre nós!... Depois... uma avezinha a elevar-se dos destroços, a soltar um
gemido plangente e, desferindo um voo audaz, a desaparecer no
*** horizonte distante...
É – e porque não? – a sua alma, a “alma-de-mestre” que parte
Sobre a grande verga, de onde pende uma complicada apare- a vigiar novos mares, levando doces esperanças aos marinheiros
lhagem, inútil neste momento de calma absoluta, uma forma que os cruzam ou recreando-nos a vista quando, abatidos os
desliza a caminho do lais. Os seus movimentos, estudados e ânimos, nos sentimos tão sós nas amplidões infinitas do
silenciosos, assemelham-se aos de um felino prestes a alcançar a Oceano!
presa ambicionada.
É fácil glória porque a pobre avezinha não deixa de dormir, ***
sôfrega de uma tranquilidade que a procela anterior não lhe
consentira! Querida avezinha! Aí está porque me enlevei tanta vez na tua
O homem – porque é um homem! – rasteja, suspende a respi- contemplação, porque segui amorosamente o teu voo vertigi-
ração e avança sempre. No seu rosto, que mal se divisa do noso ou contei absorto as curvas graciosas que descrevias em
catavento, haverá um misto de expectativa e de triunfo. A sua torno do navio: como eu, sentias o martírio das procelas, aque-
astúcia – apurada em milénios de prática – sobrelevará a instinti- cias-te ao sol dourado da bonança e amavas as quatro tábuas
va reacção do animal inferior. que, vogando por sobre as ondas alterosas, guardam o tesouro
Assim aconteceu sempre, desde que o Homem foi condenado de sonhos que existe sempre na alma do marinheiro!...
a procurar o seu alimento!
Mas, não! O marinheiro deteve a sua marcha; e com as mes-
mas cautelas infinitas, retrocede e atinge o mastro. Está agora de Travassos Valdez
pé, agarrado a um cabo, e olha com ternura o lais da verga. 1TEN
O João, o “gageiro-grande”, alma pura num corpo tisnado de (1884-1953)
32 ABRIL 99 • REVISTA DA ARMADA