Page 20 - Revista da Armada
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sextante nem sempre se pode utilizar pois,  grande campeão. Mas, mais do que isso, dá  mundo. O prestígio de Tabarly não cessa de
         numa pequena embarcação com mar agita-  um enorme empurrão aos desportos náuti-  aumentar. O Presidente da República con-
         do, não se consegue o horizonte. Aliás o  cos em França. No seu país, aumenta o nú-  vida-o para almoçar, mas nessa data precisa
         sextante será sempre para Tabarly um  mero de praticantes, adquirem-se iates e  o seu Pen Duick III vai ser posto a flutuar.
         instrumento imprescindível, porque este  barcos de regata, constroem-se marinas. O  Por uma questão de altura de maré, a ope-
         marinheiro, de ideias fixas, nunca pactuará  desporto da vela já não é um privilégio ex-  ração tem de ser feita mesmo naquele pre-
         com os sistemas de navegação por satélite.  clusivo dos ingleses. O Presidente da Repú-  ciso dia. Declina o convite. Na Marinha
           Mas ainda há mais. No dia 6 de Junho o  blica entrega a Tabarly a Legião de Honra  comenta-se: Como é que um simples
         despertador não o acorda. Que se passa?  com o grau de oficial. Jacques Chirac, a títu-  tenente recusa um convite irrecusável?
         Avariou!. Está irrecuperável.      lo póstumo, irá elevar esta condecoração ao  Todavia, pouco tempo depois, o general
           É o terceiro instrumento que o abandona.  grau de comandante.       De Gaulle envia-lhe uma carta, escrita pelo
         Continua a regata em condições que seri-  Entretanto, Eric é requisitado pelo Mi-  seu próprio punho, que reza assim: “Mon-
         am, para outros, humanamente impos-  nistério da Juventude e dos Desportos.  sieur, espero que desta vez a maré permita
         síveis. Todavia, Eric, para além da sua com-  Agora pode dedicar-se inteiramente ao seu  que possa participar no almoço previsto
         pleição robusta, tem uma força e uma deter-  desporto favorito. As despesas com a cons-  para o dia 20 de Outubro”. São assim os
         minação que move montanhas. As     trução dos barcos e a sua manutenção fo-  grandes homens.
         condições no interior do Pen Duick II tam-  ram sempre o seu calcanhar de Aquiles. O  Em Junho de 1978, tive a oportunidade
         bém não são boas. Faz frio e há muita  apelo aos “sponsers” ainda não é praticado.  de conhecer Eric Tabarly, em Brest, a bordo
         humidade, o que é altamente inconfortável  A publicação de livros é uma solução. Eric  da fragata Robert Ivens. Era comandante
         para quem tem poucos momen-                                                    deste navio o então capitão de
         tos de descanso que têm de ser                                                 fragata José Mendes Rebelo.
         bem aproveitados. Acende o                                                     Apercebi-me que Tabarly não
         fogão a carvão e o ambiente                                                    era grande conversador, como
         melhora ligeiramente.                                                          aliás é comum dizer-se. Mas tal-
           Na noite do dia 10, Eric aper-                                               vez a falta fosse minha, porque
         cebe-se que tem um problema                                                    não era esta a sua opinião. De
         no galope do mastro grande. A                                                  facto, ele escreveu a seu res-
         avaria é no moitão de uma das                                                  peito: “é costume atrbuírem-me
         adriças. Há que reparar a ava-                                                 a reputação inexacta de ser um
         ria, o que ele faz na manhã se-                                                urso, um taciturno, uma catás-
         guinte. Eric iça o material e a                                                trofe mediática, mas isso dizem
         ferramenta que vai utilizar. De-                                               os que mal me conhecem. Sem
         pois trepa pelo mastro. São 13                                                 ser um grande “bavard”, eu
         metros. Quando chega aos 10                                                    não sou um silencioso. Gosto de
         metros o balanço é tal que sente                                               falar e sempre que o assunto me
         o perigo de ser catapultado.                                                   interessa participo. Mas se a
         Desce. Mete o barco de capa.  Eric Tabarly, a bordo do N.R.P. “Comandante Roberto Ivens”, em Junho de 1978,   conversa entra em assuntos que
         Faz segunda ascensão.     na companhia do pintor Roger Chapelet, do autor e do Comandante do navio,   me são indiferentes, então
                                   capitão-de-fragata José Manuel Mendes Rebelo. (Foto cedida pelo autor).
           Desta vez chega ao topo. Re-                                                 evado-me mentalmente, calo-
         para a avaria. Está satisfeito. Mas, quando,  irá usar este recurso numerosas vezes. A  -me e por vezes chego a dormir”.
         cá de baixo, contempla a obra, constata que  sua primeira obra, Victória em solitário, é um  Todavia, o falar pouco é atestado pelos
         duas das adriças ficaram enrascadas. Bolas!  sucesso.                 seus companheiros de vela, que dizem que
         E lá vai ele, novamente, mastro acima...  Tabarly teve, ao longo da sua vida, uma  ele preferia fazer a mandar fazer. No mar,
         Quatro horas demorou este arriscado  frenética actividade de velejador de com-  Tabarly nada tinha de teórico, mas sim um
         número de funambulismo.            petição. Andar no mar, para este destemido  sentido prático excepcional que lhe permi-
           Navegar em solitário, especialmente em  marinheiro era mesmo uma obstinação. Por  tia efectuar a manobra mais adequada no
         competição, não é tarefa fácil. Os exemplos  esses infindos oceanos percorreu o equiva-  tempo certo ou improvisando, com os limi-
         não faltam. É o vento que enfurece, o mar  lente a mais de 16 voltas à Terra. Quase o  tados recursos de bordo, a reparação de
         que encapela, a avaria que surge e não há  mesmo que ir e regressar da Lua. Por isso  uma avaria inesperada.
         ninguém que ajude. Mas há pior: o isola-  não podemos acompanhá-lo, tanto mais,  O tempo vai passando e a epopeia dos
         mento, especialmente quando não há rádio  que o espaço que dispomos é restrito.  Pen Duick termina no fim dos anos 70. Ra-
         ou, como acontece com Tabarly que prefere  Corremos portanto o risco de mostrar ao  zão: a vela de alta competição deixa de se
         não o utilizar.                    leitor um retrato desfocado.       poder fazer com os recursos financeiros
           De facto nesta regata só uma única vez  Eric teve sempre um carinho especial  individuais, como até então acontecia e de
         Eric ensaia entrar em comunicação mas,  pelo nome de Pen Duick e assim foi crisman-  que Tabarly é um exemplo.
         como a ligação está demorada, desiste.  do todas as suas embarcações, só lhe  As embarcações, desenhadas por
         Isolado no mar imenso, sem qualquer infor-  mudando o número de ordem. Cada uma  famosos arquitectos navais, são construídas
         mação respeitante aos outros concorrentes,  delas era concebida para o tipo de regata  recorrendo à alta tecnologia e utilizam
         não pode haver descanso. A regra é sempre  em que ia participar.      materiais mais leves e mais resistentes que
         a mesma: exigir o máximo do barco e de si  Desenhos diferentes que iam surgindo  os tradicionais, mas que são imensamente
         próprio.                           com inovações. O casco em poliester, o tri-  dispendiosos. Uma embarcação pode cus-
           Tabarly chega em primeiro lugar.  maran, balastos constituídos por tanques de  tar mais de um milhão de contos. Assim as
         Chicester em segundo. Quando se encon-  água para compensar a inclinação do barco  despesas com a construção e manutenção
         tram, este último felicita o vencedor: “É  e até o uso de urânio empobrecido no pati-  destes “galgos do mar”, só podem ser
         uma honra ter sido batido por um mari-  lhão, dado ao facto deste metal ter uma  suportadas por firmas milionárias, que vão
         nheiro como você”. Eric Tabarly viria a  densidade muito superior ao chumbo. Aliás  receber a contrapartida na publicidade dos
         receber o troféu desta regata das mãos de  esta solução, usada no Pen Duick VI, o últi-  produtos que fabricam, feita nos cascos, nas
         uma figura histórica: Lord Montbatten.  mo da série, iria desclassifica-lo pelo júri  velas e nos descomunais spinakers.
           Com esta vitória Tabarly consagra-se um  depois de uma regata Whitbread à volta do  O barco à vela cada vez se afasta mais

         18 JANEIRO 99 • REVISTA DA ARMADA
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