Page 215 - Revista da Armada
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Retalhos da vida de um marujo
Retalhos da vida de um marujo
Vossemecê
Vossemecê
restei serviço na Defesa Marítima de Sto. António do a quem deu as informações da ocorrência. Alguns dias
Zaire (Sazaire), hoje o Soio, em Angola, claro, no depois foi chamado ao Chefe do Estado Maior, que co-
Pperíodo compreendido entre 1964 e 1967. meçou por ler a participação recebida. Nesta constava que
Nesse espaço de tempo, algumas histórias vivi que aju- o Sr. Administrador tinha tratado familiarmente o operador,
daram na feitura do meu carácter em formação. Proponho e este o tratara por tu, como um igual.
hoje, contar-vos uma, que por ter origem na personalidade Relatei então ao Sr. Comandante, em palavras reais o nível
instintiva, desse então jovem marinheiro, marcou fundo e da comunicação, acrescentando que a minha reacção fora
de algum modo a minha fruto de uma revolta
formação. instintiva, pela forma, a
O meu local de trabalho meu ver amesquinhante,
era no Centro de Comuni- como tinha sido interpe-
cações (C.C.), que fun- lado. Para além disso,
cionava 24 horas por dia. ninguém podia garantir ao
Quando o serviço o permi- Sr. Administrador que o
tia, no horário das 24.00 atendedor do telefone
às 06.00 horas, permane- fosse uma Praça.
cia no C.C. apenas um O Sr. Comandante orde-
operador. Numa madruga- nou-me tacto e muita pru-
da, por volta das 02.00 dência . Ficou em tomar
horas, o narrador do epi- uma decisão sobre o as-
sódio estava só no C.C. sunto. E tomou: A secre-
quando o telefone da linha taria do comando enviou
civil tocou, (havia mais 2 um ofício para o Sr. Ad-
linhas: Comando e Exér- ministrador: - “Exmo. Sr.
cito). Do outro lado da Administrador. Excelência.
linha veio uma interro- Ref. Vosso ofício ... este
gação: - “Ouve lá pá, a comando tomou as medi-
que horas sai a lancha de das adequadas às circuns-
abastecimento?” – Note-se tâncias e dentro da tradição
que havia uma LDM (lancha e disciplina da Marinha.
de desembarque média), Informamos V. Exa. Que o
que fazia abastecimento tratamento da Classe de Pra-
dos “FUZOS” nos postos ças na Marinha é de Vos-
do Rio Zaire, às terças e semecê, vulgo Você ....”.
quintas feiras, numa exten- Menos de um ano após
são de cerca de cem quiló- este incidente, chegou ao
metros entre Sazaire e Nó- fim a minha comissão.
qui. Era o único transporte O Comando entendeu
regular, pelo que, o Exér- que o meu desempenho
cito tal como a Administração Civil usavam-na com frequência. profissional e moral ao longo da comissão fora digno de
Perante a fraseologia usada na comunicação, vinda de apreço. Atribuindo-me louvor. – Um trecho do articulado
uma linha civil, o operador considerou-se amesquinhado, desse louvor rezava assim ... “valorizado pelo carácter
respondendo: “Ó pá, como os movimentos são confidenciais desassombrado e despido de subserviências que empresta às
não se informam pelo telefone”. – Vozeirão do lado oposto: suas relações com os superiores...”.
- “Ouve lá pá, daqui fala o Administrador. Exijo respeito e a Ter servido a Armada sobre as ordens de Homens com
informação”. – “Ouve lá pá, daqui fala o operador de este perfil de carácter: Exigentes com a disciplina e a for-
serviço, só forneço a informação ao Sr. Administrador pes- mação, simultaneamente defensores da personalidade e dig-
soalmente”. nidade dos seus subordinados, foi determinante na moldura
Alguns minutos depois, o Sr. Administrador batia à porta do meu carácter.
do C.C. (morava a cerca de 500 metros). Tratando na cir- Felizmente para mim, a esmagadora maioria dos oficiais
cunstância o operador com toda a correcção, do mesmo sob as ordens de quem prestei serviço, não apreciavam os
modo foi tratado. subservientes, vulgo engraxadores.
Mas o Sr. Administrador participou por escrito ao
Comando, sobre a comunicação ao telefone. O autor destas Geraldo Lourenço
linhas começou por ser chamado ao Oficial Chefe do C.C., C/SE REF.
32 JUNHO 99 • REVISTA DA ARMADA