Page 279 - Revista da Armada
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A MARINHA JOANINA (10)
Às Portas da Índia
Às Portas da Índia
(em 1488)
(em 1488)
ontoura da Costa, ilustre Oficial da Marinha, Professor da Mas há outras questões que devem ser analisadas, nas explo-
Escola Naval e investigador da História dos Descobrimentos rações marítimas efectuadas no reinado de D. João II. Houve as
F(falecido em 1940), elaborou um estudo sobre a evolução da viagens de exploração da costa africana efectuadas por Diogo Cão
exploração da costa ocidental africana até à passagem do Cabo da (duas ou três) e, depois, por Bartolomeu Dias. Põe-se-nos uma
Boa Esperança e chamou-lhe Às Portas da Índia em 1484. Um título pergunta: porque razão a viagem de Bartolomeu Dias levaria,
feliz, na medida em que transmite imediatamente quais eram as expressamente, uma naveta de mantimentos destinada a ficar
intenções portuguesas com essa persistente tentativa de encontrar o ancorada num ponto da costa africana, depois de reabastecer o
fim da África e a passagem para o Índico, justificando-se a indicação resto da frota? Não há notícia de que isto tenha acontecido antes, e
do ano de 1484, porque se assim se decidiu nes-
foi nesse ano que Vasco sa altura, só uma coisa o
Fernandes de Lucena, poderá justificar: previa-
elaborou, em nome de D. -se uma viagem para
João II, uma magnífica além dos limites da ca-
oração de obediência ao pacidade de abasteci-
Papa, declarando que os mento da frota. Os na-
portugueses tinham che- vios abasteciam-se de
gado “até perto do Pro- água e frescos sempre
montório Prasso, onde que podiam, mas não
começa o golfo Ará- há dúvida que para lá
bico…”. Já aqui dissemos de Cape Cross, quando
que a oração de Lucena é, se olhava para a Serra
sobretudo, uma alegoria Parda e Terra de Santa
à acção dos portugueses Bárbara, a visão da costa
elevando a personagem é a de uma coisa inós-
do seu rei, de forma a pita e deserta (deserto
impressionar o Papa e ga- da Namíbia). Não admi-
nhar prestígio na Europa ra nada que Diogo Cão
de então. Por isso, não é Mapa-mundo de Henricus Martellus, c. 1489. Este mapa apresenta uma configuração da África tenha voltado para trás
de levar à letra as afir- claramente determinada pelas explorações portuguesas até à viagem de Bartolomeu Dias. se, por acaso, não tinha
mações contidas no texto, os navios bem carrega-
e sabemos hoje que, de facto, em 1484 os portugueses ainda não ti- dos de água doce e vitualhas. O facto de, na viagem seguinte, ter
nham chegado ao Oceano Índico. O problema é que esta oração, sido providenciado um navio de reabastecimento, indica qual era
agregada à escassez de documentos coevos e fiáveis, deu azo a o problema principal que impedira a anterior expedição de
especulações de vária ordem acerca das viagens de Diogo Cão e de avançar mais para sul. É uma questão muito simples, mas é deter-
Bartolomeu Dias. A mais tentadora foi a de que o primeiro se con- minante.
venceu de que alcançara o extremo sul da África, quando da sua
última viagem, depois de ter colocado o padrão em Cape Cross e de Bartolomeu Dias — como dissemos anteriormente – chegou a
ter avistado a Serra Parda. A região apresentaria uma imagem Mossel Bay em 3 de Fevereiro de 1488. Depois, continuou a
semelhante ao que se supunha ser o mítico Promontório Prasso, tido viagem para leste e NE, sentindo que lhe vinha uma corrente
como o extremo da África, por uma tradição europeia milenar, que quente, do lado do Equador. Era notório que já passara o ex-
enganara o navegador. Teria sido por causa deste engano que Vasco tremo sul da África. Chegou até False Island, onde colocou um
Fernandes de Lucena anunciara ao Papa a proximidade do golfo padrão de pedra (S. Gregório), e a tripulação não quis que se
Arábico. Assim, quando Bartolomeu Dias verificou que ainda não avançasse mais para a frente. Permanecia o medo do desconhe-
se estava no Índico e que era necessário navegar muito mais para cido ou continuava a subsistir o problema dos abastecimentos?…
sul, o rei português ficara numa posição delicada, alvo da chacota Não é fácil saber. Os navios ainda foram até ao rio do Infante e
ou, pelo menos, da desconfiança internacional, acabando por votar regressaram junto à costa, avistando (finalmente) o Cabo da Boa
Diogo Cão ao esquecimento e evitando empolgar o êxito de Barto- Esperança (e pode calcular-se porque lhe foi dado esse nome),
lomeu Dias, com receio de outro malogro. onde deixaram o padrão de S. Filipe. Em Dias Point ficou o
Padrão de Santiago (25 de Julho) e a viagem para o reino decor-
É claro que há neste raciocínio uma certa fantasia, porque não é reu sem problemas de maior, tendo passado pela ilha do Prín-
possível deduzir nada de concreto da oração de Vasco Fernandes cipe, pelo rio do Resgate e por S. Jorge da Mina.
de Lucena. Não podemos tomar um texto com estas características
como uma fonte rigorosa para deduzir questões de carácter náutico
ou geográfico. É apenas um documento diplomático de propagan- J. Semedo de Matos
da e é nessas dimensões que tem de ser mantido. CTEN FZ
24 AGOSTO 99 • REVISTA DA ARMADA