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A MARINHA JOANINA (10)



                     Às Portas da Índia
                      Às Portas da Índia




                                              (em 1488)
                                              (em 1488)




             ontoura da Costa, ilustre Oficial da Marinha, Professor da  Mas há outras questões que devem ser analisadas, nas explo-
             Escola Naval e investigador da História dos Descobrimentos  rações marítimas efectuadas no reinado de D. João II. Houve as
         F(falecido em 1940), elaborou um estudo sobre a evolução da  viagens de exploração da costa africana efectuadas por Diogo Cão
         exploração da costa ocidental africana até à passagem do Cabo da  (duas ou três) e, depois, por Bartolomeu Dias. Põe-se-nos uma
         Boa Esperança e chamou-lhe Às Portas da Índia em 1484. Um título  pergunta: porque razão a viagem de Bartolomeu Dias levaria,
         feliz, na medida em que transmite imediatamente quais eram as  expressamente, uma naveta de mantimentos destinada a ficar
         intenções portuguesas com essa persistente tentativa de encontrar o  ancorada num ponto da costa africana, depois de reabastecer o
         fim da África e a passagem para o Índico, justificando-se a indicação  resto da frota? Não há notícia de que isto tenha acontecido antes, e
         do ano de 1484, porque                                                              se assim se decidiu nes-
         foi nesse ano que Vasco                                                             sa altura, só uma coisa o
         Fernandes de Lucena,                                                                poderá justificar: previa-
         elaborou, em nome de D.                                                             -se uma viagem para
         João II, uma magnífica                                                              além dos limites da ca-
         oração de obediência ao                                                             pacidade de abasteci-
         Papa, declarando que os                                                             mento da frota. Os na-
         portugueses tinham che-                                                             vios abasteciam-se de
         gado “até perto do Pro-                                                             água e frescos sempre
         montório Prasso, onde                                                               que podiam, mas não
         começa o golfo Ará-                                                                 há dúvida que para lá
         bico…”. Já aqui dissemos                                                            de Cape Cross, quando
         que a oração de Lucena é,                                                           se olhava para a Serra
         sobretudo, uma alegoria                                                             Parda e Terra de Santa
         à acção dos portugueses                                                             Bárbara, a visão da costa
         elevando a personagem                                                               é a de uma coisa inós-
         do seu rei, de forma a                                                              pita e deserta (deserto
         impressionar o Papa e ga-                                                           da Namíbia). Não admi-
         nhar prestígio na Europa                                                            ra nada que Diogo Cão
         de então. Por isso, não é  Mapa-mundo de Henricus Martellus, c. 1489. Este mapa apresenta uma configuração da África   tenha voltado para trás
         de levar à letra as afir-  claramente determinada pelas explorações portuguesas até à viagem  de Bartolomeu Dias.  se, por acaso, não tinha
         mações contidas no texto,                                                           os navios bem carrega-
         e sabemos hoje que, de facto, em 1484 os portugueses ainda não ti-  dos de água doce e vitualhas. O facto de, na viagem seguinte, ter
         nham chegado ao Oceano Índico. O problema é que esta oração,  sido providenciado um navio de reabastecimento, indica qual era
         agregada à escassez de documentos coevos e fiáveis, deu azo a  o problema principal que impedira a anterior expedição de
         especulações de vária ordem acerca das viagens de Diogo Cão e de  avançar mais para sul. É uma questão muito simples, mas é deter-
         Bartolomeu Dias. A mais tentadora foi a de que o primeiro se con-  minante.
         venceu de que alcançara o extremo sul da África, quando da sua
         última viagem, depois de ter colocado o padrão em Cape Cross e de  Bartolomeu Dias — como dissemos anteriormente – chegou a
         ter avistado a Serra Parda. A região apresentaria uma imagem  Mossel Bay em 3 de Fevereiro de 1488. Depois, continuou a
         semelhante ao que se supunha ser o mítico Promontório Prasso, tido  viagem para leste e NE, sentindo que lhe vinha uma corrente
         como o extremo da África, por uma tradição europeia milenar, que  quente, do lado do Equador. Era notório que já passara o ex-
         enganara o navegador. Teria sido por causa deste engano que Vasco  tremo sul da África. Chegou até False Island, onde colocou um
         Fernandes de Lucena anunciara ao Papa a proximidade do golfo  padrão de pedra (S. Gregório), e a tripulação não quis que se
         Arábico. Assim, quando Bartolomeu Dias verificou que ainda não  avançasse mais para a frente. Permanecia o medo do desconhe-
         se estava no Índico e que era necessário navegar muito mais para  cido ou continuava a subsistir o problema dos abastecimentos?…
         sul, o rei português ficara numa posição delicada, alvo da chacota  Não é fácil saber. Os navios ainda foram até ao rio do Infante e
         ou, pelo menos, da desconfiança internacional, acabando por votar  regressaram junto à costa, avistando (finalmente) o Cabo da Boa
         Diogo Cão ao esquecimento e evitando empolgar o êxito de Barto-  Esperança (e pode calcular-se porque lhe foi dado esse nome),
         lomeu Dias, com receio de outro malogro.             onde deixaram o padrão de S. Filipe. Em Dias Point ficou o
                                                              Padrão de Santiago (25 de Julho) e a viagem para o reino decor-
           É claro que há neste raciocínio uma certa fantasia, porque não é  reu sem problemas de maior, tendo passado pela ilha do Prín-
         possível deduzir nada de concreto da oração de Vasco Fernandes  cipe, pelo rio do Resgate e por S. Jorge da Mina.
         de Lucena. Não podemos tomar um texto com estas características
         como uma fonte rigorosa para deduzir questões de carácter náutico
         ou geográfico. É apenas um documento diplomático de propagan-                            J. Semedo de Matos
         da e é nessas dimensões que tem de ser mantido.                                                  CTEN FZ

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