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Coisas do coração
                      Coisas do coração



                                           A propósito de Timor




         INTRODUÇÃO

             olicitaram-me um artigo para a Revista da Armada
             (RA), sobre Timor. Contudo, a experiência de Ti-
         S mor não se exprime facilmente em palavras. De
         toda a forma tentarei, nos parágrafos e nas imagens se-
         guintes, acrescentar qualquer coisa da minha experiên-
         cia para (assim o espero) benefício dos leitores da RA.
           Perdoarão os leitores que gostariam de uma descrição
         meticulosa, jornalística, do que pude observar. É que eu
         não sei escrever assim. Na verdade, desde há muito que
         “não escrevo”, apenas arrumo ideias que bamboleiam
         no coração.

         O ESPAÇO

           Imagine o leitor uma topografia de colinas, montes e  Búfalos pachorrentos.
         penhascos de todos os tamanhos (a crescer para o centro
         da ilha), cobertos por vegetação tropical, embora muito longe dos  tenha estado em duas povoações Manatuto e Dili). Na realidade pou-
         coqueiros e palmeiras dos paraísos tropicais das agências de viagem.  cas casas mantiveram a sua integridade, muitas não têm telhado,
         Imagine, ainda, vales rendilhados pelos campos de arroz, palmeiras  quase todas foram vandalizadas – sim, mesmo aquelas dos timoren-
         dispersas aqui e ali, por vezes em filas. Nalguns vales passam ribeiros,  ses responsáveis pela destruição (os milícias), que destruíram as suas
         noutros rios de caudal razoável e água de cor creme, opaca.   próprias casas.
           Por vezes estradas estreitas, como que desenhadas à mão por uma  Em Dili, na quase totalidade das ruas ficaram paredes negras -
         criança mal comportada, riscam o verde dos vales. Búfalos pastam  esqueletos de casas. Restam as igrejas e a catedral de Dili. Fica-se,
         pachorrentamente; enlameiam-se felizes em poças à beira da estrada.  aliás, com a impressão que, por todo o Timor, só as construções da
         Parecem-me animais magníficos, alheios a tudo à sua volta, livres e  Igreja estão de pé – não foram destruídas, é voz corrente, por supers-
         sábios. Espantam pela serenidade, no meio de toda a devastação  tição (não por respeito, mas por medo do sobrenatural).
         provocada pelos humanos e, pelo menos para mim, surgem mais  Lembro aqui, também, uma das atracções turísticas de Dili. Trata-
         racionais que alguns dos seres bípedes à sua volta. O Timor natural,  -se de um crocodilo de grandes dimensões, mantido num tanque,
         visto do ar, lembra enfim (e esta foi uma impressão partilhada) as ima-  não muito longe do porto. Reza o mito que foi apanhado pequeno.
         gens dos filmes do Vietname, tão populares na década de 80.  Diz-se, ainda, que teria crescido muito nos últimos meses – ou seria
           Completa-se o quadro com um mar de água de um azul profundo,  só a maledicência dos homens??
         aqui e além manchada de creme – o creme dos rios. Finalmente, fica
         a recordação da baía de Dili à noite - um dos poucos locais com ilu- AS PESSOAS
         minação pública de Timor - lembrava, lembrava muito, a baía do
         Funchal.                                              Este capítulo da minha vivência em Timor é, certamente, o mais
           As construções em Timor, contrastam com a beleza natural descri-  difícil de descrever. De verdade, por profissão, estou mais exposto ao
         ta, pela fealdade da destruição que pude presenciar (ainda que só  sofrimento humano, em todas as suas facetas. A doença acarreta sem-
                                                                          pre uma carga psicológica pesada – aí encontram-se
                                                                          todas as atitudes: desde a compreensível melancolia
                                                                          e desespero, até á coragem resignada de quem
                                                                          enfrenta um desafio que não escolheu. Não raro,
                                                                          encontro, ainda, sofrimento físico tão pesado que só
                                                                          a morte o aliviará, tornando-a desejável.
                                                                           Nos timorenses, encontrei todos estes sofrimentos
                                                                          nos muitos contactos, profissionais e humanos, que
                                                                          tive no Hospital da AMI, onde trabalhei. No entanto,
                                                                          deparei, em todos, com uma serenidade interior que
                                                                          não conhecia. Nas crianças infestadas por toda a
                                                                          espécie de parasitas (alguns capazes de causar
                                                                          cegueira), nas mulheres cansadas de tantos filhos e
                                                                          das recorrentes crises de malária, no homem da ca-
                                                                          verna tuberculosa, arrastado pelos familiares, em to-
                                                                          dos, enfim, só encontrei serenidade. Não uma sereni-
                                                                          dade “de rir para não chorar”, mas uma força incom-
                                                                          preensível, serena, discreta, afável, que – assim per-
                                                                          cebi - tudo suporta...
                                                                           Várias vezes tive a sensação de que me era mais
         Manatuto - Vista aérea, com a mistura das águas ocres do rio no azul do mar.  pesada a vivência de tanto sofrimento, do que aos
         32 JUNHO 2000 • REVISTA DA ARMADA
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