Page 214 - Revista da Armada
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Coisas do coração
Coisas do coração
A propósito de Timor
INTRODUÇÃO
olicitaram-me um artigo para a Revista da Armada
(RA), sobre Timor. Contudo, a experiência de Ti-
S mor não se exprime facilmente em palavras. De
toda a forma tentarei, nos parágrafos e nas imagens se-
guintes, acrescentar qualquer coisa da minha experiên-
cia para (assim o espero) benefício dos leitores da RA.
Perdoarão os leitores que gostariam de uma descrição
meticulosa, jornalística, do que pude observar. É que eu
não sei escrever assim. Na verdade, desde há muito que
“não escrevo”, apenas arrumo ideias que bamboleiam
no coração.
O ESPAÇO
Imagine o leitor uma topografia de colinas, montes e Búfalos pachorrentos.
penhascos de todos os tamanhos (a crescer para o centro
da ilha), cobertos por vegetação tropical, embora muito longe dos tenha estado em duas povoações Manatuto e Dili). Na realidade pou-
coqueiros e palmeiras dos paraísos tropicais das agências de viagem. cas casas mantiveram a sua integridade, muitas não têm telhado,
Imagine, ainda, vales rendilhados pelos campos de arroz, palmeiras quase todas foram vandalizadas – sim, mesmo aquelas dos timoren-
dispersas aqui e ali, por vezes em filas. Nalguns vales passam ribeiros, ses responsáveis pela destruição (os milícias), que destruíram as suas
noutros rios de caudal razoável e água de cor creme, opaca. próprias casas.
Por vezes estradas estreitas, como que desenhadas à mão por uma Em Dili, na quase totalidade das ruas ficaram paredes negras -
criança mal comportada, riscam o verde dos vales. Búfalos pastam esqueletos de casas. Restam as igrejas e a catedral de Dili. Fica-se,
pachorrentamente; enlameiam-se felizes em poças à beira da estrada. aliás, com a impressão que, por todo o Timor, só as construções da
Parecem-me animais magníficos, alheios a tudo à sua volta, livres e Igreja estão de pé – não foram destruídas, é voz corrente, por supers-
sábios. Espantam pela serenidade, no meio de toda a devastação tição (não por respeito, mas por medo do sobrenatural).
provocada pelos humanos e, pelo menos para mim, surgem mais Lembro aqui, também, uma das atracções turísticas de Dili. Trata-
racionais que alguns dos seres bípedes à sua volta. O Timor natural, -se de um crocodilo de grandes dimensões, mantido num tanque,
visto do ar, lembra enfim (e esta foi uma impressão partilhada) as ima- não muito longe do porto. Reza o mito que foi apanhado pequeno.
gens dos filmes do Vietname, tão populares na década de 80. Diz-se, ainda, que teria crescido muito nos últimos meses – ou seria
Completa-se o quadro com um mar de água de um azul profundo, só a maledicência dos homens??
aqui e além manchada de creme – o creme dos rios. Finalmente, fica
a recordação da baía de Dili à noite - um dos poucos locais com ilu- AS PESSOAS
minação pública de Timor - lembrava, lembrava muito, a baía do
Funchal. Este capítulo da minha vivência em Timor é, certamente, o mais
As construções em Timor, contrastam com a beleza natural descri- difícil de descrever. De verdade, por profissão, estou mais exposto ao
ta, pela fealdade da destruição que pude presenciar (ainda que só sofrimento humano, em todas as suas facetas. A doença acarreta sem-
pre uma carga psicológica pesada – aí encontram-se
todas as atitudes: desde a compreensível melancolia
e desespero, até á coragem resignada de quem
enfrenta um desafio que não escolheu. Não raro,
encontro, ainda, sofrimento físico tão pesado que só
a morte o aliviará, tornando-a desejável.
Nos timorenses, encontrei todos estes sofrimentos
nos muitos contactos, profissionais e humanos, que
tive no Hospital da AMI, onde trabalhei. No entanto,
deparei, em todos, com uma serenidade interior que
não conhecia. Nas crianças infestadas por toda a
espécie de parasitas (alguns capazes de causar
cegueira), nas mulheres cansadas de tantos filhos e
das recorrentes crises de malária, no homem da ca-
verna tuberculosa, arrastado pelos familiares, em to-
dos, enfim, só encontrei serenidade. Não uma sereni-
dade “de rir para não chorar”, mas uma força incom-
preensível, serena, discreta, afável, que – assim per-
cebi - tudo suporta...
Várias vezes tive a sensação de que me era mais
Manatuto - Vista aérea, com a mistura das águas ocres do rio no azul do mar. pesada a vivência de tanto sofrimento, do que aos
32 JUNHO 2000 • REVISTA DA ARMADA