Page 215 - Revista da Armada
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com uma máquina administrativa pesada. É constituída por pessoas de
muitas nacionalidades, sendo a grande maioria dos seus países de
origem também bastante pobres. Não pretendendo, nem me con-
siderando capaz de julgar a organização, fica, pelo menos na área da
Saúde, a ideia de alguma ineficácia. Exemplo disto era o facto de em
Timor a tuberculose se apresentar como um grave problema de saúde
pública, deparando-se os médicos com uma escassez quase total de
fármacos específicos para esta entidade.
Aguardava-se um “Plano de Saúde”, por parte das organizações
presentes, encabeçadas pelas estruturas da ONU, para ajuizar das
necessidades e actuar em conformidade. Sabendo-se que o tratamen-
to da tuberculose é prolongado e exige vários fármacos, corre-se o
risco de criar resistências terapêuticas se o tratamento não for seguido
O rapaz do peixe. à risca, tornando aceitável a necessidade de um plano de combate a
esta entidade. Não era, todavia, fácil aceitar a demora do referido
próprios afligidos. Esta sensação, penso, era aliás compartilhada pelo “Plano de Saúde” e a consequente ausência de fármacos, na frente de
pessoal da AMI e outros médicos estrangeiros presentes no terreno. doentes que definhavam para um fim demasiado previsível.
Senti ainda uma grande afabilidade por parte de todos, que vinham Das ONGs era claro, em particular na Saúde, que são as respon-
à consulta “dos Portugueses”, com uma alegria que nos deixava na sáveis pelos cuidados médicos iniciais, em grande escala e descen-
obrigação de fazer milagres. Lembro, a este propósito, o homem de ar tralizados. A eficácia depende da ONG em causa e do empenho pes-
mais seco e envelhecido do que a idade faria antever, mas de grande soal dos seus efectivos. Felizmente, muitos destes efectivos são pes-
dignidade, que nos cumprimentou efusivamente. Sendo o domínio da soas desejosas de ajudar, muitas vezes em condições de conforto
língua de Camões de tão bom nível, perguntei-lhe o que fazia. Aí, en- mínimo e de risco para a saúde pessoal. Neste capítulo vi de tudo,
chendo o peito num orgulho incontido, confessou com ar decidido: enfermeiras franzinas encararem as dificuldades com uma coragem
- Sou mestre-escola senhor, ensinava Português. Durante todos extraordinária e ilustres clínicos abatidos pelo calor, pela humidade e,
estes anos tenho vivido do que consigo criar, porque fui proibido de principalmente, por tanta dor e sofrimento. No final, achei que cada
dar aulas, mas quero fazer o curso de reciclagem para professores... um fazia o que podia e era esse o objectivo, tal como na vida.
Nesse dia ocorreu-me a seguinte dúvida: que
portugueses seriam estes, capazes de, do outro
lado do mundo, deixar tal impressão nos colo-
nizados? Acho que histórias semelhantes a esta
podem contar todos os militares da “Vasco da
Gama”, que nos fizeram acreditar em valores
diferentes dos que pululam no subconsciente do
país actual – cheios de um sabor efémero e
pimba, transmitidos em longas e vazias tardes de
televisão, vendidos como certezas sem as quais
nenhum ser humano sobrevive.
No final, creio ser este o maior mérito da mis-
são de Timor, lembrar-nos do que fomos e deve-
mos porfiar por ser.
OS OUTROS EM TIMOR
De entre os outros em Timor, destacam-se os
militares australianos, os jornalistas , a ONU e as Caras de meninos.
várias Organizações Não Governamentais
(ONGs).
Dos australianos, nos muitos contactos pessoais e profissionais que A ESPERANÇA
tive em Timor e na Austrália, destacam-se uma civilidade e uma
organização invejáveis. São naturalmente simpáticos e, ao melhor do A esperança encontra-se por todo o lado em Timor. Esperança
meu conhecimento, facilitaram toda a sua logística. Fica-se, de resto, num país independente e livre, esperança em melhores condições
com a noção de que tudo o que funciona no domínio público em de vida, esperança na paz que se sedimenta...Ressalta uma grande
Timor, actualmente, terá sido obra dos Australianos. Em Dili colo- esperança nos Portugueses e no que os Portugueses podem fazer por
caram, inclusivamente, uma antena para telefones da rede móvel Timor. Espero e, acredito, esperamos todos, que os timorenses não
que permitia contactar a família, em Portugal. – capacidade muito saiam defraudados.
apreciada a bordo da “Vasco da Gama”. Falta lembrar o contributo de cada um dos membros da guarnição
Dirá o leitor avisado: “e então quais são os seus interesses finais?” da “Vasco da Gama”, que tudo fizeram para ajudar e dar esperança,
Honestamente, não sei bem. O que sei e vi é que ajudaram, pelo de uma forma, voluntária, simples e corajosa. Apesar da distância e
menos agora, o povo comum de Timor, o resto parecia, no momento das saudades vi, de todos, actos de generosidade e sacrifício que ul-
actual, pouco importante. trapassaram, em muito, o simples dever naval e a retórica de outras
Passando para o grupo seguinte, os jornalistas (em particular os por- instituições no terreno.
tugueses), deve inferir-se que australianos não correspondem aos Quem sabe, talvez seja verdade que o segredo da felicidade reside
“papões” desprovidos de humanidade por eles descritos. Alguns jor- em dar sem esperar receber. Cada acto incógnito, servirá, disso estou
nalistas, esses sim, difundiram notícias sobre a “Vasco da Gama” e a certo, pelo menos para reafirmar a força do que nos diferencia como
sua missão sem qualquer nexo, como o leitor estará recordado. pessoas – a solidariedade. No final, todos como eu, trazem Timor no
Felizmente, como em todas as profissões, muitos ainda valorizam a coração.
ética e deram conta de factos importantes. Luís Bronze
Da ONU fica-se a ideia de que se trata de uma mega organização, 1TEN MN (Cardiologista)
REVISTA DA ARMADA • JUNHO 2000 33