Page 320 - Revista da Armada
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Histórias da botica
                              Histórias da botica


                                            A Estrelinha do Céu




            embro-me muitas vezes dele, era um  E perguntei. Na verdade havia um tumor a  Senti-lhe pela primeira vez lágrimas no
            homenzarrão alto e forte, da gesta dos  crescer na cabeça da menina, que era pre-  olhar. Saiu sem dizer nada. Tinha percebido
         Lque nasceram nas faldas da Serra do  ciso operar se não o tumor cresceria e iria  que eu não podia oferecer-lhe nada de
         Gerês, com um ar resistente, maciço, como a  provocar ainda mais danos do que já causa-  novo...
         montanha que o viu nascer. Conhecemo-nos  va, até um falecimento, certo, a médio prazo.  Passaram os meses e o Gerês, manteve-se
         dois dias após a minha chegada ao navio -  As más notícias não ficavam por aí, da cirur-  cordial, embora distante, como antes. À per-
         era artilheiro e trabalhava, ainda, na secre-  gia poderiam ocorrer sérias complicações,  gunta directa, "como vai a sua filha?", acena-
         taria - entregou-me o cartão de detalhe.   uma vez que operar em certas localizações,  va sem dizer nada e passava rapidamente.
           Era também, assim pude perceber, um                                 Deixei de perguntar, por achar que cada um
         homem de poucas palavras, metido consigo                              tem o direito de gerir as suas angústias da
         mesmo e sem o jeito folgazão que carac-                               maneira que lhe aprouver. – Além do mais,
         teriza a marinhagem. Falámos muito poucas                             sentia uma certa tristeza pessoal por não ter
         vezes, de coisas simples de serviço e pratica-                        podido fornecer melhor ajuda ...
         mente só por monossílabos. Muito compe-                                 Finalmente, fiquei a saber pelo Imediato –
         tente nas suas tarefas era, respeitador de um                         a filha do Gerês tinha falecido. Foram-lhe
         modo dedicado e antigo, agora raro. Tam-                              concedidos dias de licença para o funeral e
         bém com os camaradas era sempre assim,                                para acompanhar a família. Informou-me o
         calado, quieto, como o granito da serra.                              Imediato, com ar circunspecto:
         Metiam-se com ele:                                                      - Parece que andava a tratar a filha com
           - Andas triste pá?                                                  um ervanário lá da terra, pois tinham-na
           - A minha avó fala mais que tu, ó artista!!                         querido operar, mas era arriscado e ele não
           Nada, não havia resposta ou reacção.                                aceitou.
         Parecia imutável nas suas tarefas, insensí-                             Contive a surpresa e dei a entender que
         vel à distância, à solidão e a outros males                           todo o assunto era novo. Longe de mim, tam-
         do espírito ou do corpo, queixas comuns                               bém, criticar o Gerês pela atitude que tomou.
         entre os outros, que preenchiam os meus                               O desespero da situação era imenso e a
         dias naquele navio. Por isso fiquei sur-                              solução prevista pela medicina clássica,
         preendido quando me abordou, num belo                                 muito difícil de aceitar. Quando cada escolha
         fim de tarde, na tolda, a navegar rumo aos                            dói, quem pode dizer qual é a correcta...
         Açores:                                                                 Encontrei o Gerês uns dias mais tarde, sen-
           - Senhor doutor, posso falar consigo? Te-                           tado sozinho, no molhe do porto do Funchal,
         nho uma pergunta a fazer-lhe – manteve o                              numa bonita noite quente e límpida da
         ar composto que lhe era habitual, como se                             Primavera Madeirense. Cumprimentei e, para
         fossemos falar de uma qualquer rotina do                              meu grande espanto, o Gerês sorriu. E
         detalhe. Descemos à enfermaria e falámos.                             respondeu:
         Para minha surpresa, o assunto era sério:                               - Doutor olhe para o céu, veja aquela
           - Doutor, preciso do seu conselho!  confinadas do cérebro, pode acarretar lesões  estrela pequenina e, apontando dizia, ali à
           - Diga, perguntei curioso.       importantes, com sequelas sensoriais ou da  direita!
           - Tenho uma filha de sete anos, doutor, e  motricidade, definitivas e potencialmente  Olhei e lá estava a estrelinha no céu, irra-
         gosto muito dela – as palavras saíam-lhe de-  incapacitantes.         diava uma luz bela, diferente das muitas que
         vagar, como se lhe custasse deitar cá para  Assim, devidamente informado, reflecti  se viam nessa noite.
         fora o que lhe ia no coração – ora a menina  durante alguns dias sobre o conselho a dar.  - Viu-a doutor? É a minha filhinha que está
         começou a ter tonturas e dores de cabeça,  Sempre achei difícil dar conselhos a outros  ali, no céu! – dizia emocionado, com brilho
         pelo que a ando a tratar no Hospital de Santa  sobre assuntos pessoais, fora da relação  no olhar.
         Maria.                             profissional médico-doente e isto de acon-  Disse-lhe que sim, que a via e ficámos os
           Calou-se.                        selhar sobre um assunto tão delicado, pare-  dois a olhar o céu, em silêncio.
           E então, só por dores de cabeça foi preciso  cia-me particularmente duro. Quando me  Vi outras coisas naquele dia - vi que o
         ir para Sta. Maria, o que tem ela? encorajei  decidi, mandei chamar o Gerês – pois assim  Gerês tinha achado paz, que a vida e a me-
         eu...novo silêncio e continuou...  fiquei com ele na memória - para lhe comu-  dicina são mais do que o preto e o branco,
           - Fizeram-lhe muitos exames, muitas radio-  nicar, tal como solicitada, a minha opinião.   são mais que o certo e o errado. Percebi,
         grafias, muitos testes e um professor disse-me  No tom mais neutro que pude avancei:  ainda, que cada homem precisa de ver a sua
         que era um tumor no cérebro – havia tristeza  - Olhe de facto a situação parece má e eu  estrela no céu, quando a única escolha é a
         pela primeira vez no seu olhar – querem ope-  compreendo o seu dilema, mas tudo tem so-  ausência de escolha.
         rar, mas avisam a cirurgia é difícil e há um  lução! - Ele fitava-me com esperança no  Muitas vezes, desde então, estando eu per-
         grande risco de complicações. Eu, eu não sei o  milagre que eu não podia fornecer.  dido, procurei ver outras estrelas no céu.
         que devo fazer, doutor. Qual é a sua opinião??  - No seu caso eu seguia em frente com a  Nem sempre consegui. Penso, mesmo, que
           Estremeci perante tal questão, mas disse  operação, uma vez que o risco do pior acon-  para isso é preciso ter o coração puro, a
         palavras encorajadoras: que provavelmente  tecer parece ser certo. Sabe que eles (os  esperança viva e a alma límpida - como as
         não seria bem assim, que ia investigar, que  cirurgiões), são bons naquilo que fazem.  manhãs da Serra do Gerês.
         conhecia cirurgiões no referido Serviço de  Temos que ter confiança! – Concluí, final-
         Sta. Maria, enfim que ia perguntar...  mente, em tom esperançoso.                                  Doc.

         30 SETEMBRO/OUTUBRO 2000 • REVISTA DA ARMADA
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