Page 34 - Revista da Armada
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O primeiro disco gravado
                  O primeiro disco gravado


                                        em Portugal
                                        em Portugal






               a manhã do dia 3 de Abril de 1903, a população ribeirinha de  Após demorada es-
               Alcântara foi agitada por um acontecimento insólito. O estra-  colha, foi por fim acer-
         N nho aparecimento mesmo nas “barbas” da Marinha Real, ou  tado o espaço ideal. O
         melhor, na própria Praça da Armada, de um misterioso carregamento  oficial da Armada Rio
         de origem duvidosa.                                  de Carvalho teste-
           Tratava-se de vários caixotes de desmesuradas proporções que aler-  munha nas seguintes
         taram os moradores pela forma dolorosa e lenta, e em simultâneo  palavras o evento.
         espectacular, como os carros de bois arqueavam e gemiam sob o peso  “Várias peças trou-
         da bagagem de um inglês colossal, pela sua altura e corpolência.  xeram um grande e
           De imediato, desenvolveram-se as conjecturas mais diversas entre  pesado caixote para o
         os populares. Acaso seria mais uma acção espectacular de cariz  meio da caserna onde
         republicana? Alguém chegou mesmo a afirmar:          o Chefe da Banda já se
           “Isto não passa de uma combinação para começar a revolução!” –  tinha reunido com os
         mas logo a sabedoria da idade foi revelada por aquela velha varina ao  músicos. A meu lado,
         esclarecer – “Estas coisas estrangeiras são obras do maligno, não vêm  o senhor Castelo Bran-
         estas palavras que ninguém percebe escritas aqui nesta caixa???” – e  co, da loja das máqui-  Primeiro registo sonoro efectuado em Portugal sob
         apontava com o dedo esticado para uma frase misteriosa – “The  nas falantes que tinha  disco rígido (disco oferecido ao Rei D. Carlos pela
         Gramophone and Typwriter Ltd”. Todo este tumulto foi resolvido com  conduzido junto do  Companhia “The Gramophone and Typewriter Ldª”).
         o pronto esclarecimento de um guarda municipal – “Óh senhora não  Comandante do Corpo
         vê que são canhões para a Marinha!” – Com a referência aos marujos  todas as demarches para a gravação do disco e que acompanhara o
         tão queridos da cidade, que dúvidas ainda poderiam restar?  inglês que vinha fazer a gravação, todos assistimos cheios de natural
           A “procissão” encaminhou-se para o quartel. Subitamente surgiram  curiosidade às tarefas de retirar dos caixotes um aparelho de estranha
         alguns marujos com alguns burricos para ajudarem o transporte para o  configuração com cornetas acústicas e múltiplas peças niqueladas que
         interior das instalações navais. Já no interior da unidade, os olhares  o inglês manuseava a ver se haviam sido molestadas na viagem.
         estupefactos nem ousavam pronunciar qualquer comentário. Era um  Era um inglês avantajado envolto num casacão alvadio aos quadra-
         dia grande para todos. O mundo estava concentrado em Alcântara.  dos. Era tão alto que ele e o chefe Chéu, maestro da Banda, formavam
           Todo esse equipamento espectacular estava destinado de facto a um  um conjunto impressionante, um ao lado do outro, quando procediam
         momento histórico. A primeira gravação fonógrafa portuguesa.  à gravação emergindo sobre os marujos que estavam sentados.
           A opção da Banda da Armada para esse acontecimento justifica todas  Quando se gravou a primeira música, o inglês colocou uma lâmina
         as informações e sobressaltos anteriores. A Banda dos Marinheiros, já  fina de estanho sobre o prato circular em aço prendendo-o nas extre-
         naquele tempo, tinha uma posição relevante no panorama cultural e mi-  midades por um anel, que em seguida apertou ficando a lâmina de
         litar da nação e especialmente em Lisboa, onde era popular e querida.  estanho toda justa ao prato circular onde assentava.
                                                               Posto o prato a girar, o inglês deu sinal ao regente Chéu para este
                                                              dar início à partitura, a Rapsódia Portuguesa nº 2 de Rodrigues, após o
                                                              início da execução colocou sobre a lâmina de estanho um braço
                                                              metálico, o qual tinha na ponta um estilete ou safira como lhe
                                                              chamou, e esta fazia um sulco sobre a lâmina de estanho.
                                                               Terminada a execução da Rapsódia, retirou-se o prato giratório com
                                                              a gravação em espiras muito juntas entre si e sobre as quais o inglês
                                                              lançou um líquido escuro que em seguida limpou suavemente. Depois
                                                              de seca a emolução, foi colocado o prato giratório no seu lugar e
                                                              manuseados certos mecanismos do aparelho, posto o que perante o
                                                              pasmo geral de todos nós se ouviu perfeitamente a execução musical
                                                              como se estivéssemos ouvindo à distância. Só à terceira tentativa e
                                                              tendo mudado de sala, o inglês deu mostras de estar satisfeito dizendo
                                                              que o prato metálico gravado com a música seria remetido para a
                                                              Alemanha onde seriam estampados os discos”.
                                                               A “marujada” ficou muda perante aquele mistério e alguém
                                                              comentou:
                                                               -“Qualquer dia nem o homem é preciso!”
                                                               De novo a Marinha Portuguesa, através da Banda dos Marinheiros,
                                                              tinha escrito uma página imortal da história do país.
                                                               Portugal estava mais enriquecido e os seus marinheiros legitima-
                                                              mente orgulhosos.

                                                                                                      Araújo Pereira
                                                                                                         CTEN MUS
         Maestro António Maria Chéu. Foi sob a sua regência que se gravou em Portugal,                Paulo Brandão
         em 1903, o 1º disco fonográfico.                                                                  SMOR B
         32 JANEIRO 2000 • REVISTA DA ARMADA
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