Page 397 - Revista da Armada
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Património Cultural da Marinha
             Património Cultural da Marinha


                                         Peças para Recordar





                                         22. O Arcanjo S. Rafael


                Diz a Bíblia (livro de Tobias) que Tobite, homem honesto e piedoso, casado com Ana e pai do jovem Tobias,
             viveu o cativeiro de Ninive, de onde se viu impedido de regressar devido à cegueira que o atacou. Envolto na
             pobreza e sem saber como casar o seu filho fora da tribo a que pertencia, mandou que este fosse a Média cobrar
             um dinheiro que aí tinha deixado guardado. Contudo a viagem era longa e perigosa, pelo que procurou alguém que
             lhe desse confiança, para acompanhar o jovem Tobias naquela jornada. Sem que nenhum deles se apercebesse, foi
             o próprio Arcanjo Rafael que acompanhou Tobias a Média e lhe explicou como haveria de libertar Sara da
             maldição do demónio e como proceder para a tomar como esposa, herdando toda a riqueza de seu pai. É esta a
             lenda mais famosa a que se vê ligado o nome de S. Rafael e é natural que se tenha tornado padroeiro dos cami-
             nhantes ou de todos aqueles que procuram caminhos desconhecidos e perigosos, necessitados de uma protecção
             superior. Talvez seja esta a razão porque uma das naus de Vasco da Gama tem o nome do arcanjo, invocando assim
             a sua protecção para uma longa jornada à procura da Índia longínqua. E a verdade é que o próprio almirante - e,
             depois, toda a sua descendência - manifestou uma especial devoção por S. Rafael, chegando até nós um teste-
             munho físico dessa veneração com a lendária imagem do arcanjo, existente no Museu de Marinha.
                Confesso que quando ouvi contar que aquela imagem de S. Rafael tinha viajado até à Índia, em 1497, a
             bordo da nau com o mesmo nome, encarei o relato com um enorme cepticismo, associando esta hipótese às
             múltiplas lendas fantásticas de que está pejada a História dos Descobrimentos Portugueses. Contudo, uma
             maior atenção sobre o facto*, levou-me a um relato de viagem de Goa para Lisboa, escrito por Gaspar Ferreira
             Reimão em 1600, onde se diz o seguinte: "mandou o Conde tirar e trazer do altar oje o anjo são Rafaell com
             muita festa, que he o mesmo que seu avoo que esta em gloria trouxe comsigo quando descobrio a jndia". O
             Conde a que se refere o relato é D. Francisco da Gama, bisneto de Vasco da Gama e 4º Conde da Vidigueira
             que viajou da Índia para o reino na nau S. Francisco, de que era piloto Gaspar Ferreira Reimão. Teixeira de
             Aragão – autor de uma vasta obra intitulada Vasco da Gama e a Vidigueira – diz-nos que a imagem de S. Rafael
             fez as três viagens de Vasco da Gama ao Oriente e acompanhou, igualmente, D. Francisco da Gama, das duas
             vezes que este efectuou a mesma jornada para exercer o cargo de Vice-Rei (uma dessas vezes é a que temos
             documentada no diário de Gaspar Ferreira Reimão). Com a mesma fé de que S. Rafael lhe guiaria os passos e o
             protegeria na difícil e delicada missão que o movia a França depois da Restauração, D. Vasco Luís da Gama, 5º
             Conde da Vidigueira e 1º Marquês de Niza, mandaria buscar a imagem à capela onde a tinham guardado os
             seus avós, para que o acompanhasse nas embaixadas que D. João IV enviou a Luís XIII e a Ana de Áustria.
                E seria esta a mesma imagem que agora vemos no Museu de Marinha?... É também Teixeira de Aragão que nos
             esclarece esta dúvida. Ao tempo de D. Francisco da Gama foi feita uma capela devotada ao arcanjo, nas imedia-
             ções da vila da Vidigueira, onde ficou depositada a imagem. Mas essa capela foi devassada e vandalizada na
             sequência das chamadas guerras liberais e da revolução de 1834. Contudo a imagem deve ter sido retirada a
             tempo, porque foi encontrada em 1852 pelo mesmo autor, na igreja do recolhimento do Espírito Santo. Entretanto,
             em 1880, quando do aniversário da morte de Luís de Camões, foi transferida para os Jerónimos, de onde passou ao
             Museu de Marinha em 1950.
                A imagem com cerca de 65 centímetros de altura é feita em madeira de azinho que foi várias vezes pintado,
             talvez até para encobrir os males provocados pelo tempo. Naturalmente que nunca foi figura de proa de nenhuma
             nau (como alguns quiseram fazer crer), mas foi transportada a bordo de vários navios, provavelmente em capela
             apropriada, ajustada por uma base metálica onde enroscava um varão de ferro e presa ainda por duas argolas colo-
             cadas nas costas do santo. Está datada do final do século XV (o que coincide com a hipótese de ter sido feita para
             embarcar na nau S. Rafael, da esquadra de Vasco da Gama) e identifica-se com a escola flamenga de Malines. Pode
             ter sido feita em Portugal – até porque o material assim o aponta –, mas Pedro Dias não tem dúvidas de que o terá
             sido por artista nórdico ou por outro que tenha frequentado essa escola artística do gótico final.
                Tudo leva a crer, pois, que estamos perante um último testemunho físico da viagem de Vasco da Gama, trans-
             portado na nau S. Rafael, invocando a protecção do arcanjo que acompanhara Tobias nos caminhos bíblicos de
             Ninive a Média. O navio (como se sabe) perdeu-se na viagem, mas a imagem foi recuperada e, apesar todos os aci-
             dentes do tempo, sobreviveu até aos nossos dias, podendo ser vista no Museu de Marinha. A devoção como é olha-
             da por nós, marinheiros de hoje, poderá não ser a dos homens de quinhentos, mas, enquanto sobreviver, será o
             símbolo das missões bem sucedidas: daquelas que a trouxeram de volta sã e salva. É o nosso S. Rafael.

                *Devo à amabilidade do Doutor José Manuel Garcia a pista fundamental para seguir o caminho desta imagem, desde o século XV até hoje.

                                                                              Museu de Marinha
                                                                              (Texto do CTEN FZ Semedo de Matos)
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