Page 393 - Revista da Armada
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grande orgulho do visado e gáudio (e talvez Falava comigo regularmente, nem sei bem assim, que leva homens na força da vida.
uma ponta de inveja) dos outros. porquê. Não sou um especialista nessa área, Homens fortes e corajosos. Homens bons e
Tudo parecia ter corrido bem até ao dia nem tínhamos tido, até então, uma relação válidos. Parecia-me uma tremenda injustiça,
em que o nosso marinheiro procurou o Ser- particularmente próxima. Penso que precisa- que alguém fosse punido de tal maneira.
viço de Saúde por corrimento ureteral. Algo va, pura e simplesmente, de alguém que o Irritaram-me, particularmente, as de-
tinha corrido mal. Era, como o leitor já ouvisse. clarações de um membro do clero, que por
percebeu, o “resfriado” habitual entre os Passada esta fase, passou a encarar a vida esses dias, na televisão, sugeria ser a SIDA
homens de mar, que, na ausência de ba- dia após dia e, nalguns dias de maior sofri- um castigo divino, pelos desmandos do
lanço, dormem com os pés de fora, em terra. mento, minuto após minuto, segundo após homem...Não aceito, nem aceitarei nunca, a
Contudo os riscos destes tempos são outros e segundo. Envelheceu subitamente. Falava existência de um Deus assim castigador,
com alguma irritação, na voz e no espírito, agora das coisas importantes da vida, do feroz, próximo dos tempos da Inquisição.
lá avisei o herói, para ter cuidado, que assim amor que tinha aos pais, do cão que afaga- Este herói único, verdadeiramente mere-
arriscava a vida inutilmente... va, de como a chuva na cara lhe tinha feito cedor desse nome. Não tinha cometido mais
Fez o antibiótico indicado para o mal que sentir a beleza da vida. Num esforço de pecados, que outro qualquer. Teve pouca
o afligia e melhorou, esquecendo pron- coragem pediu para retornar ao serviço acti- sorte, mas sofreu com uma dignidade sóbria,
tamente a bateria de testes que lhe passei, a vo. Deram-lhe um lugar numa fragata em que envergonha os que os descriminaram, ou
efectuar após o regresso. grande reparação. Aí o seu segredo extrava- julgaram. Se há outra vida (e eu espero que
Os avisos só foram levados a sério quando, sou e foi alvo de alguma discriminação pelos haja), lá estará ele a rir-se dos sofrimentos que
passados alguns meses, foi acometido de uma próprios camaradas: por cá deixou. Nesse Vietmanso, só poderá
febre que não desaparecia. No internamento - Eles não compreendem Doutor, alguns ser rei, porque suportou um calvário indizível.
hospitalar, para esclarecimento da situação, até calçam as luvas para me cumprimentar e E eu, eu, procuro lembrá-lo, frequentemen-
fizeram-lhe testes, era HIV positivo. Tinha co- não se sentam comigo à mesa - dizia com te, agradecendo a experiência que comigo
meçado o seu calvário. E durou anos. tristeza. partilhou. Nesses dias tenho orgulho de ser
Progressivamente, o nosso herói lá se foi Mas não desesperou e tolerou com uma médico. E espero que, de lá onde está, me
habituando à noção de que estava realmente resignação digna de um verdadeiro herói, as ajude a resistir às tentações do consumismo,
doente, passou como em todos os doentes diarreias, o herpes facial e a degradação do do lucro fácil, da impessoalidade – tão
graves, que conheci, pela fase dos porquês: estado geral, que tanto impressionava. comuns na prática médica actual. Espero,
- Porquê ele “tão burro”, se tinha envol- - Pareço um zombie - dizia com um sor- ainda, que se um dia um dos meus filhos per-
vido com a Canadiana? – Afinal aquela não riso ictérico - mas caraças, ainda respiro! guntar porque não sou rico, leia estas linhas e
era apenas uma doença de homossexuais, No final, todo o seu corpo era pasto dos perceba que as coisas importantes da vida
drogados e outros comportamentos aber- germes, fez uma septicémia que o havia de não se pagam, mas têm valor inestimável.
rantes, tal como ele pensava... levar. Não passava já de um esqueleto, só os Aos outros, meus caros leitores, recomen-
- Porquê, havia de ter sido ele, afinal olhos mantinham a vivacidade de sempre. do que aprendam com esta história. Porque
conhecia pessoas muito piores e com com- Impedido de falar pelo tubo orotraqueal, que expõe uma guerra mais perigosa, do que as
portamentos habituais de risco, sem nunca o ligava ao ventilador, apertou-me a mão guerras de sangue e balas, porque o inimigo
terem contraído a doença? com firmeza, não era uma despedida, era age sempre emboscado num pacote de pra-
Pôs tudo em causa. Tudo estava errado, a um até breve...Faleceu no dia seguinte. zer descomprometido e é, por isso, particu-
vida, a família, Deus, os homens e a sorte, Durante dias andei furioso com a vida. larmente eficaz.
madrasta, que lhe tinha trazido tal destino. Era-me impossível racionalizar uma doença Doc.
CONVÍVIOS
UM JANTAR INÉDITO
Na passada noite de 11 de Outubro cinco cadetes de Marinha e
um da Reserva Naval do curso “Oliveira do Carmo” resolveram
relembrar a mesa do refeitório escolar de 1965 e assim realizaram
um jantar comemorativo no meio dos cadetes actuais.
Essa romagem de saudade inédita até agora, foi realizada
pelos então cadetes José Manuel Alves Correia (hoje Contra-
-Almirante), Henrique Vacas de Carvalho (hoje Capitão-de-
-Mar-e-Guerra), Fernando Sousa Maciel (Secretário Geral do
Hospital Amadora Sintra), Carlos Coelho de Campos (Presi-
dente do grupo Pararede), Artur Santos Silva (Presidente do
Grupo BPI) e Manuel Pinto Machado (Director do IPE).
EX-DFE 12 (GUINÉ 70/71)
Os elementos do Destacamento de Fuzileiros Especiais n.º
12, em comissão na Guiné 1970/71, reuniram-se em confrater-
nização na Escola de Fuzileiros no passado dia 19 de Agosto. O
programa incluiu uma cerimónia em memória dos mortos em
combate, visita à Escola de Fuzileiros e um almoço convívio no
Montijo.
REVISTA DA ARMADA • DEZEMBRO 2000 31