Page 105 - Revista da Armada
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lugar porque falta o ambiente físico, visto  certamente uma forma de genialidade,  compreendo inteiramente, poucos se têm
         que os bares da generalidade dos hospi-  que quase muitos já esqueceram e se-  reunido agora nas manhãs de Quarta-
         tais não são mais que um balcão eléctrico  riam, certamente, mal compreendidas,  -feira, e o Clube da Velha, está discreto.
         de mau gosto, cheio de batatas fritas com  noutros hospitais em que as pessoas já  Talvez passe a haver um interregno e
         nomes estranhos e “donuts” pegajosos,  não convivem...Constituem, também, e  outro Clube surja, quando essas pessoas
         complementados por umas mesas “para  para além do humor brilhante, um  acharem outros gestos para racionalizar
         comer de pé” – uma invenção contra a  núcleo importante do Hospital, pois  o sofrimento de outros, que tão bem
         verdadeira natureza humana – onde se  são os que asseguram as consultas de  conhecem...Talvez a Velha tenha morri-
         sorve, numa pressa, um café de má quali-  4ª feira, aquelas, com o maior peso de  do, ou a paixão esfriado. Será – estou
         dade, servido por senhoras mal dispostas  doentes, (pela lógica, tipicamente naval,  seguro - apenas cansaço, ou desmoti-
         (decerto pouco acarinhadas pelos maridos  de “ir buscar a guia à 2ª Feira, procurar  vação, pelo peso dos tempos em que
         e namorados), que preferiam estar noutro  consulta à 4ª Feira e a 6ª Feira não ser,  vivemos,  dos quais também eu me
         sítio. Nada disto se passa no Hospital da  obviamente, um bom dia para ir ao  queixo,  onde muitos não vislumbram
         Marinha, onde um Cabo antigo e sabido,  médico, tão perto que está o fim de se-  inspiração...
         serve um café em chávena aquecida, a  mana”).                           Quem era o médico amante da Velha,
         quem o pedir, complementado por uma  E no meio dos cheiros do café e do  perguntará o leitor? Honestamente, já me
         saudação especial, que se acrescenta ao  barulho ensurdecedor da, também velha,  esqueci e se soubesse não dizia, particu-
         ambiente natural das madeiras, sofás e  máquina de moagem, ficará para sempre  larmente, agora, em que o amor pode
         gasta alcatifa...                  – assim espero – este grupo de pessoas,  andar livre e ser belo em qualquer
           Também estes médicos, julgo eu, são  que se encontrarão nestas palavras e  idade... Sei apenas que a Velha, será
         diferentes, pois a estoicidade do visado e  que, a seu modo, são o espírito do  sempre um mito, que fará sorrir uns e
         a invenção dos outros – que atribuíam  Hospital da Marinha, que se não revê só  outros, a registar nos anais do velho
         tanta doença à honrosa velha, que a fa-  em pedras históricas, em enfermarias  Hospital da Marinha...
         riam morrer tantas vezes, quanto a  longas, ou gabinetes de consulta.
         ressuscitaram para proveito próprio - são  Infelizmente, por motivos que não                       Doc.




            Poesia





                             Três Sonetos a Bocage






         Poeta excelso e marinheiro audaz,  Lutaste, com firmeza e com verdade,  Sonhei dissecar teu corpo frio,
         Fruto desta raça lusitana,         Por valores qu’inda hoje veneramos,  Naquela lúgubre morgue em que estudei,
         Soubeste, como poucos, ser capaz,  P’la justiça, p’la honra e liberdade,  Sentindo um fundo e tétrico arrepio,
         De amar com mel e combater com gana.  E por outros sentimentos tão humanos.  Logo que, receoso, de ti me aproximei.


         Amaste mulheres belas e atraentes,  Bravura, rectidão e lealdade,     Tua pele era lívida e enrrugada,
         Que em ti viam prazer e gostosura,  Amor, carinho e muita compaixão,  Com rigidez nos músculos e flacidez no sexo,
         Entregando-se, deleitadas e ardentes,  Brotaram sempre, desde tenra idade,  A árvore vascular colapsada,
         Aos encantos de tua formosura.     De teu generoso e nobre coração.   Uma anatomia já sem qualquer nexo.



         Mas quando os invejosos despontavam,   Mas sabendo bem o que valias.  Após abrir teu tronco enfraquecido,
         Ávidos de triunfo e de glória,     Como poeta maior entre os notáveis,  Com vísceras já em parte putrefeitas,
         Tentando fazer sombra a teu valor,  Sem nunca pactuares com impostores,  Deixei para o fim o órgão cerebral.



         Logo derrotados se assustavam,     Com que arte e ardor tu os zurzias,  E fiquei francamente estarrecido,
         Fugindo a sete pés dessa oratória,  Em sublimes versos memoráveis,    Quando uma voz do além, de graves efeitos,
         Selo inconfundível de teu estro arrasador.  Belos, fluentes, jocosos e zombadores.  Solene, disse: Aí não toques, é um foco genial.





                                               JOAQUIM FÉLIX ANTÓNIO


                                                                                      REVISTA DA ARMADA • MARÇO 2003  31
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