Page 80 - Revista da Armada
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om quase uma dezena de anos a escrever inin- convivem no dia a dia. Poderíamos dizer que estas
               terruptamente nesta revista, onde já ultrapas- características sucedem com todos os alunos que fre-
         C sei largamente a centena de artigos, eis que me quentaram a mesma escola ou com todas as crianças
         surge o maior dos desafios: escrever sobre o Colégio que, de algum modo, as circunstâncias da vida jun-
         Militar, sobre as suas características, as suas virtudes, taram durante uma certa fase do seu crescimento e
         o espírito de quem o frequentou e, enfim, sobre o formação. É verdade. Contudo, no Colégio Militar
         conjunto de particularidades que marcaram todos os isso é vivido 24 horas por dia, com um padrão com-
         que passaram por aqueles claustros centenários. O portamental bem definido que se inspira nos mais
         desafio foi-me lançado pelo Director, que sabe muito dignos e elevados valores cultivados pela Instituição
         bem quanto amor dedico à casa que me formou, e Militar, indispensáveis ao seu funcionamento.
         devo dizer que nunca me foi tão difícil enfrentar a Naturalmente que naquela juventude se cria uma
         folha de papel, sabendo de antemão que tinha de aí forma de estar e proceder que os marinheiros com-
         deixar gravado algo do que está no mais fundo da preenderão muito bem. O que são afinal os “filhos da
         minha alma, que sinto todos os dias, que já me deu escola”? O que é que faz com que dentro da Marinha
         tantas sorrisos francos quanto lágrimas de emoção se sintam “filhos da escola” todos aqueles que fize-
         ou de dor, porque é um sentimento complexo feito ram a sua formação ao mesmo tempo?... Foi a alvora-
         de excessos e de paixões que não toleram a indife- da especial, foi aquela noite em que choveu muito e
         rença. Tudo o que constitui a nossa vida, entre a andámos todos no rio, foi aquele embarque em que
         idade dos calções, com joelhos esfarrapados, até ao enjoaram quase todos, foi aquele dia em que o oficial
         despertar dos amores terríveis que nos fazem sonhar de dia apanhou toda a gente a dormir até mais tarde,
         com uma lua só para nós, eu passei-o no Colégio foi a pista de lodo de madrugada, foi ... foi tudo e
         Militar. Passei-o eu e passaram-no dezenas de ofi- mais alguma coisa que culminou com um juramento
         ciais da nossa Marinha que compreenderão muito de bandeira, com uma entrega de boinas ou com uma
         bem o que quero dizer e quanto é difícil transpor entrega de espadas. E reparem o carinho com que
         para o papel a amálgama de sentimentos e definir o nos chamamos uns aos outros, durante uma vida
         conjunto de maneiras de ser ali adquiridas, explican- inteira: “filhos da escola”. Reconhecendo-nos irmãos
         do-as com clareza e discernimento, para que possam numa mesma formação, com tudo o que ela
         ser entendidas por todos os outros, hoje nossos envolveu: uma escola mãe e uma escola pai que nos
         camaradas de armas, amigos e companheiros, todos criou e formou para a Marinha. O Colégio Militar é,
         filhos da nobre instituição que é a Marinha. As pois, a instituição mãe e pai de gerações de alunos,
         palavras ficam para trás da voz do coração, e dei- como o foi o Corpo de Marinheiros, a Escola Alunos,
         xam-me a sensação de estar a dizer coisas sem senti- a Escola de Fuzileiros ou a Escola Naval. Simples-
         do, de que escrevo frases entrecortadas por longos mente o período de gestação prolonga-se por um
         silêncios que são dias, meses ou mesmo anos da longo período que vai da puberdade até quase à
         minha meninice vividos dentro daquelas paredes idade adulta. Compreendemos assim porque osten-
         onde tudo parece sempre igual e onde, afinal, tudo tam a barretina na lapela? porque se tratam de
         acontece. Perdoem-me, pois, aqueles que partilharam maneira diferente? porque confiam uns nos outros de
         a mesma vivência que eu, a forma tosca como expri- forma especial? e porque chegam ao dia 3 de Março
         mo sentimentos que, sabemos, serem tão profundos e de cada ano e vão como loucos para a Avenida da
         tão fortes. Mas perdoem-me igualmente todos os Liberdade gritar Zacatraz, Zacatraz, à passagem dos
         outros pela forma titubeante do discurso insuficiente que ainda lá andam?.... Fazem-no porque aqueles
         para explicar o que em mim próprio fica encerrado miúdos com farda cor de pinhão são agora a imagem
         numa teia emocional, que só esporadicamente con- viva da sua própria juventude que revivem naquele
         sigo abrir.                                          dia, acreditando por momentos que, enquanto hou-
           A vivência do Colégio Militar e dos seus alunos é, ver Meninos da Luz com farda cor de pinhão a desfi-
         essencialmente, uma vivência de fraternidade com lar na Avenida da Liberdade (ou onde quer que seja),
         todos os elementos que esta expressão pode conter. eles serão eternos. Serão eternos naquela frater-
         Os irmãos são briguentos por vezes, têm o seu nidade e – mais importante do que tudo isso – serão
         próprio feitio, vivem a sua vida com a condicionante eternos os valores que os moldaram desde os dez
         que advém da unidade da família, e têm duas coisas anos de idade: será eterna a camaradagem colegial
         que os distinguem e identificam: assimilam um con- (forma sublime de definir a fraternidade de que já
         junto de valores éticos comportamentais que tem falei), será eterno o amor à pátria, a integridade de
         uma fonte comum; e vivem uma espécie de cumplici- carácter, a lealdade, a coragem, a vontade de ultra-
         dade que é apenas uma forma sublime de amizade, passar todos os limites, a força de acreditar em algo
         feita do saberem como reage a mãe, o pai, os fami- que é mais importante do que eles próprios, sabendo
         liares mais chegados, vizinhos, todos os que com eles que só assim a ideia vive e a obra nasce.

         6 MARÇO 2003 • REVISTA DA ARMADA
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