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HISTÓRIAS DA BOTICA (35)



                               Sudoeste Rijo
                               Sudoeste Rijo




                                                                               não acontece, estou eu convencido, se a am-
                                                                               biência for carregada de fingimento e mentira,
                                                                               em relação a si mesmo e aos outros, situação
                                                                               que, sabemos todos, é cada vez mais comum
                                                                               nesta sociedade egoísta e fria…Não era o caso
                                                                               daquele velho homem, rijo e límpido, que da-
                                                                               quela forma me abordara, no mais íntimo dos
                                                                               tumultos, pelos quais passava…
                                                                                 Fui, ainda assim incrédulo, saber quem
                                                                               era aquele estranho homem. Disseram-me
                                                                               que entre os seus camaradas era conhecido
                                                                               como Sudoeste Rijo. Velho Comandante que
                                                                               passava o dia a animar outros enquanto enga-
                                                                               nava os vómitos do tratamento imposto para
                                                                               o cancro, que já há algum tempo arrastava.
                                                                               Nos conturbados dias seguintes arranjei, para
                                                                               mim mesmo, pretextos para visitar o Coman-
                                                                               dante Sudoeste Rijo e falávamos de tudo um
                                                                               pouco. Do país, dizia ele – “O nosso país pas-
                                                                               sou a ter uma nova exportação para colma-
                                                                               tar os tempos de crise e depressão económi-
                                                                               ca. Não, não é uma nova indústria, nem uma
                                                                               nova casta de vinhos, nem vamos melhorar
                                                                               a produtividade, vamos, isso sim, exportar a
                                                                               pedofilia, na qual nos tornámos, subitamente,
                                                                               peritos…”E, acrescentava – “Somos, também,
                                                                               famosos pela extraordinária qualidade artísti-
                                                                               ca da nossa televisão, cheia de telenovelas
                                                                               com elaborados enredos de sucesso, em que
                                                                               o cunhado dorme com a sobrinha, sob o olhar
                                                                               atento da avó desta, que, exultante, acredita
                                                                               tratar-se de uma relação moderna...”
                                                                                 Naqueles dias, a ironia daquele homem e
                                                                               a sua visão descomprometida aliviavam-me
                                                                               a alma e divertiam-me. Intimamente, gostava
                                                                               daquela sã loucura e uma amizade cresceu
                                                                               entre nós. Achei, bem a propósito, que nesses
                                                                               dias se jogava o resto da minha vida – ceder
                                                                               à tirania, ou lutar pelo que considero justo e
                                                                               correcto. Do céu cai-me o Sudoeste Rijo que
             ncontrei-o, numa manhã, na enfer-  uma vez não se fez rogado, retorquindo:   me diz – sem que eu nunca lhe confessasse
             maria. Saudou-me de forma sóbria.   -Eu, rapazinho, estou a lutar com ele mas  em que tempestade navegava – para continu-
         EConhecia aquela face desde há mui-  não vou sem luta…                ar. É que percebi, finalmente, que mais vale
         to, mas nunca tínhamos falado. Havia uma   Um sorriso trocista sentiu-se na sua alma e,  defender uma ideia que consideramos cor-
         postura séria, de desafio, naquele homem  nesse preciso momento, na minha…As emo-  recta, sujeitando-nos a todo o tipo de ame-
         – que eu já conhecera noutros pacientes –  ções, todas as emoções livres de fingimento,  aças e incorrecções, do que viver toda uma
         do tipo ela (a morte, bem entendido…) anda  saberá o leitor, têm uma forma estranha de  vida de cobardia e compromisso (que muitas
         por aí, mas não me leva, assim, às boas. Es-  chegar ao coração de outros, numa espécie  vezes é uma forma de cobardia). Há épocas
         tranhou, seguramente, o meu ar sombrio,  de “wireless” biológico (ainda não decifrado  na vida, em que nos julgamos perdidos, ro-
         de guerras presentes. Pressentiu o medo e  pela ciência), que nos faz sentir, exactamente,  deados pela mentira e pela falsidade. Aca-
         a fúria que me iam na alma. Não fez per-  o que vai na alma dos outros e que nos per-  brunhados dentro de nós próprios, tentados
         guntas. Em vez disso gritou de forma rude:  mite saber tudo o que as palavras não dizem.  a aceitar meias verdades e situações dúbias
           -O Doutor anda perdido no balanço e o  Acontece, deste modo, quando sentimos que  – que só nos vão prolongar o sofrimento. O
         enjoo está a baralhar-lhe o espírito…e con-  alguém nos olha com interesse, mesmo quan-  exemplo do Comandante Sudoeste Rijo diz-
         tinuou, apesar do meu silêncio, acrescen-  do nós próprios não vemos que estamos a  -nos, ao contrário, que é preferível olhar em
         tando – aguente firme, volte a cara ao vento  ser observados. Acontece, também, sentirmos,  frente e de peito aberto, gritar, aqui me têm!
         e deixe-o passar – conclui finalmente...Em  para lá das palavras e atitudes, a tristeza, a ale-  Tenham força! Disparem de uma vez, para
         face da insistência lá perguntei, de uma for-  gria, a coragem e o desânimo no coração de  que tudo acabe aqui, como deve acontecer
         ma meramente formal e algo distante, a tal  pessoas, conhecidas ou estranhas, com quem  entre homens e passe, por fim, a tortura lenta
         cavalheiro como ia a sua saúde? Ele mais  convivemos…Esta forma de comunicação só  das beliscadelas vis.

         30  JUNHO 2004 U REVISTA DA ARMADA
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