Page 212 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS DA BOTICA (35)
Sudoeste Rijo
Sudoeste Rijo
não acontece, estou eu convencido, se a am-
biência for carregada de fingimento e mentira,
em relação a si mesmo e aos outros, situação
que, sabemos todos, é cada vez mais comum
nesta sociedade egoísta e fria…Não era o caso
daquele velho homem, rijo e límpido, que da-
quela forma me abordara, no mais íntimo dos
tumultos, pelos quais passava…
Fui, ainda assim incrédulo, saber quem
era aquele estranho homem. Disseram-me
que entre os seus camaradas era conhecido
como Sudoeste Rijo. Velho Comandante que
passava o dia a animar outros enquanto enga-
nava os vómitos do tratamento imposto para
o cancro, que já há algum tempo arrastava.
Nos conturbados dias seguintes arranjei, para
mim mesmo, pretextos para visitar o Coman-
dante Sudoeste Rijo e falávamos de tudo um
pouco. Do país, dizia ele – “O nosso país pas-
sou a ter uma nova exportação para colma-
tar os tempos de crise e depressão económi-
ca. Não, não é uma nova indústria, nem uma
nova casta de vinhos, nem vamos melhorar
a produtividade, vamos, isso sim, exportar a
pedofilia, na qual nos tornámos, subitamente,
peritos…”E, acrescentava – “Somos, também,
famosos pela extraordinária qualidade artísti-
ca da nossa televisão, cheia de telenovelas
com elaborados enredos de sucesso, em que
o cunhado dorme com a sobrinha, sob o olhar
atento da avó desta, que, exultante, acredita
tratar-se de uma relação moderna...”
Naqueles dias, a ironia daquele homem e
a sua visão descomprometida aliviavam-me
a alma e divertiam-me. Intimamente, gostava
daquela sã loucura e uma amizade cresceu
entre nós. Achei, bem a propósito, que nesses
dias se jogava o resto da minha vida – ceder
à tirania, ou lutar pelo que considero justo e
correcto. Do céu cai-me o Sudoeste Rijo que
ncontrei-o, numa manhã, na enfer- uma vez não se fez rogado, retorquindo: me diz – sem que eu nunca lhe confessasse
maria. Saudou-me de forma sóbria. -Eu, rapazinho, estou a lutar com ele mas em que tempestade navegava – para continu-
EConhecia aquela face desde há mui- não vou sem luta… ar. É que percebi, finalmente, que mais vale
to, mas nunca tínhamos falado. Havia uma Um sorriso trocista sentiu-se na sua alma e, defender uma ideia que consideramos cor-
postura séria, de desafio, naquele homem nesse preciso momento, na minha…As emo- recta, sujeitando-nos a todo o tipo de ame-
– que eu já conhecera noutros pacientes – ções, todas as emoções livres de fingimento, aças e incorrecções, do que viver toda uma
do tipo ela (a morte, bem entendido…) anda saberá o leitor, têm uma forma estranha de vida de cobardia e compromisso (que muitas
por aí, mas não me leva, assim, às boas. Es- chegar ao coração de outros, numa espécie vezes é uma forma de cobardia). Há épocas
tranhou, seguramente, o meu ar sombrio, de “wireless” biológico (ainda não decifrado na vida, em que nos julgamos perdidos, ro-
de guerras presentes. Pressentiu o medo e pela ciência), que nos faz sentir, exactamente, deados pela mentira e pela falsidade. Aca-
a fúria que me iam na alma. Não fez per- o que vai na alma dos outros e que nos per- brunhados dentro de nós próprios, tentados
guntas. Em vez disso gritou de forma rude: mite saber tudo o que as palavras não dizem. a aceitar meias verdades e situações dúbias
-O Doutor anda perdido no balanço e o Acontece, deste modo, quando sentimos que – que só nos vão prolongar o sofrimento. O
enjoo está a baralhar-lhe o espírito…e con- alguém nos olha com interesse, mesmo quan- exemplo do Comandante Sudoeste Rijo diz-
tinuou, apesar do meu silêncio, acrescen- do nós próprios não vemos que estamos a -nos, ao contrário, que é preferível olhar em
tando – aguente firme, volte a cara ao vento ser observados. Acontece, também, sentirmos, frente e de peito aberto, gritar, aqui me têm!
e deixe-o passar – conclui finalmente...Em para lá das palavras e atitudes, a tristeza, a ale- Tenham força! Disparem de uma vez, para
face da insistência lá perguntei, de uma for- gria, a coragem e o desânimo no coração de que tudo acabe aqui, como deve acontecer
ma meramente formal e algo distante, a tal pessoas, conhecidas ou estranhas, com quem entre homens e passe, por fim, a tortura lenta
cavalheiro como ia a sua saúde? Ele mais convivemos…Esta forma de comunicação só das beliscadelas vis.
30 JUNHO 2004 U REVISTA DA ARMADA