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DIVAGAÇÕES DE UM MARUJO (9)
Falar Português
Falar Português
iz-se que um homem (ou mulher, uma não conseguiu atingir este grande objectivo da cipalmente, escritores-vedetas-de-reality-shows
vez que o conceito do politicamente sua existência. O ideal seria ter posses suficien- (perdoem-me o estrangeirismo), sem que o seu
Dcorrecto é avesso a estas generalizações tes para uma edição de autor ou recorrer a um talento seja devidamente avaliado e deixando de
de tendências machistas), para fazer valer a sua editor conhecido, mesmo que os nossos méritos fora inúmeros candidatos com grande potencial.
existência deve, durante a sua curta passagem literários não estejam devidamente comprovados Este, sim, é o triunfo da chamada “escrita light”
pela Terra, “plantar uma árvore, ter um filho e (e hoje em dia assistimos a muitos desses casos, (Ops! Lá saiu mais um).
escrever um livro”. A ideia parece-me nobre na entre os quais se contam os de alguns supostos Mas o que será, então, necessário para que um
sua essência, contudo, algumas particularidades “meninos-prodígio” que foram devidamente texto seja considerado de qualidade e para que
exigem que nos debrucemos mais um escritor seja considerado um
atentamente sobre o assunto: bom escritor? Ao utilizar a expres-
Quanto ao acto de plantar uma são “seja considerado”, parto já do
árvore, nada a opôr, antes pelo con- princípio de que não há critérios de
trário, e eu próprio já o fiz, pelo me- julgamento absolutos nem avalia-
nos, um par de vezes. Se, porém, ções totalmente imparciais.
descontarmos o acto criminoso, Creio ser da opinião geral que
cometido anualmente, de cortar um escritor deve saber exprimir-se
um pinheirinho recém-criado para correctamente na língua em que
compor a decoração natalícia da escreve. Este conceito de correc-
nossa casa, devo dizer que tenho ção é, porém, mais polémico do
na consciência, como autor mate- que à partida possa parecer. Se,
rial ou apenas moral, o abate de, em tempos, as regras de gramática
pelo menos, vinte e uma indefesas e de ortografia eram extremamente
arvorezinhas (converti-me, entre- rígidas, com o objectivo de preser-
tanto, às facilidades do pinheiro var a língua em toda a sua pureza,
artificial). Assim sendo, para poder hoje em dia já se tem um conceito
apresentar um saldo positivo, te- mais dinâmico e liberal em relação
nho, ainda, umas vinte árvores para à expressão linguística. E a verda-
plantar, o que não será tarefa fácil, de é que uma língua não é uma
uma vez que, para a coisa ser bem realidade estática, pelo contrário,
feita, há não só que plantá-las mas está em permanente evolução, re-
também garantir a sua subsistência cebendo (e dando) as mais varia-
até terem a robustez suficiente para das influências, o que contribui
vingarem por si próprias. decisivamente para a sua riqueza.
Ter um filho parece, à primeira Que seria, aliás, do Português se a
vista, uma tarefa simples, depen- rigidez original do Latim não fosse
dendo apenas da fertilidade das deturpada pelo uso popular e en-
pessoas envolvidas. O que não riquecida pelo valioso intercâmbio
se pode esquecer é que, tal como com outras culturas?
uma árvore, uma criança (mesmo E no que toca a incorrecções,
depois de oficialmente perdido temos, hoje, exemplos de verda-
esse estatuto, pelo que a designa- deiros “pontapés na Gramática”
ção deve aqui ser entendida no seu que já foram institucionalizados,
sentido lato) exige grandes cuidados e atenções “empurrados”). E se falarmos de obras publicadas como a expressão “o comum dos mortais”, lar-
que, hoje em dia, se podem prolongar durante qual será a mínima tiragem para serem conside- gamente utilizada em vez de “o mais comum
perto de um quarto de século (e com tendência radas? É que se bastar um exemplar, em qualquer dos mortais”, ou do celebérrimo “penso [eu]
para aumentar!). Além disso, sendo a tarefa nor- tipografia se conseguirá uma impressão por um de que…”. Já nem falo daqueles treinadores de
malmente repartida por duas pessoas, calha a preço módico. E, já agora, qual o número míni- futebol que dizem que “a moral da equipa está
cada casal o dever de lançar, pelo menos, duas mo de páginas ou, para sermos rigorosos, o nú- em baixo”, sem saber que com tal expressão
crianças ao Mundo, isto se cada um quiser ter o mero mínimo de caracteres? E poderemos contar estão a afirmar que os seus jogadores se entre-
seu quinhão de realização pessoal, e fiquemos os espaços e a pontuação? gam a actividades licenciosas ou, no mínimo,
por aqui, para não embarcar em considerações Eis, pois, as dúvidas que se colocam a qual- pouco recomendáveis. E que dizer das palavras
de carácter demográfico que nada adiantariam quer potencial escritor. E, depois, há a questão da re-derivadas que todos os dias surgem na Co-
à nossa conversa. E, já agora, será legítimo con- fama: há os que escrevem para a ganhar e há os municação Social, tais como “fusionar” em vez
siderarmos os casos de adopção? Não terão os que a têm e utilizam para publicar o que escre- de “fundir”, “referenciar” em vez de “referir” ou
casais inférteis, na sua desvantagem natural, o vem. Numa sociedade em que o lucro é o prin- “sugestionar” em vez de “sugerir”?
direito de se realizarem neste campo? Não será cipal objectivo é fácil enveredar pelo segundo Já na nossa Marinha (muito à semelhança do
igualmente trabalhoso pegar numa criança de- caminho, pois é mais provável os editores apos- que se passa no mundo empresarial) tornou-se
samparada, vesti-la, calçá-la, alimentá-la e edu- tarem em quem lhes dará garantias de venda, extremamente popular o aportuguesamento de
cá-la devidamente? O raciocínio complica-se e independentemente da qualidade da sua escrita. palavras e expressões anglo-saxónicas, mesmo
promete não ficar por aqui… O importante é saber que as massas se sentem que na nossa língua existam as suas equiva-
Resta-nos, por fim, abordar o tema da escrita mais estimuladas a procurar um autor que já co- lentes, pois dá um ar entendido e muito pro-
de um livro: será suficiente escrevê-lo ou have- nheçam por outros predicados, o que lhes agu- fissional. Surgem, assim, preciosidades como
rá, ainda, que publicá-lo? Se for este último caso, ça a curiosidade. É por isso que, cada vez mais, “mandatório”, “briefar”, “colapsar”, “lockar”,
facilmente chegaremos à conclusão de que cer- assistimos ao despontar de escritores-actores, es- “reportar” (com o sentido de “relatar”), “checar”
ca de noventa e nove por cento da Humanidade critores-jornalistas, escritores-desportistas e, prin- ou “sanitar” (pormenores deste tipo fazem com
30 DEZEMBRO 2004 U REVISTA DA ARMADA