Page 97 - Revista da Armada
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da linha do vento, ficando a manobra defini-  Subsistem ainda outros argumentos que de-  beneficiando da sua melhor capacidade para
         tivamente comprometida. Em todo o caso, há  vem ser levados em linha de conta aquando da  bolinar. Contrariamente aos navios redondos,
         situações em que apenas se consegue virar por  escolha do aparelho de um grande veleiro.  estes não são obrigados a buscar mais a sul os
         davante depois de o navio ganhar seguimento   Começando pelas questões relativas ao pes-  ventos gerais, como de resto era apanágio dos
         a ré, mas já com o leme carregado ao bordo  soal, podemos dizer que o navio redondo é,  lugres bacalhoeiros na demanda dos bancos
         oposto àquele em que foi iniciada a manobra,  neste capítulo, muito mais exigente, dada a  da Terra Nova. Também nesta actividade, por-
         tirando-se partido desta característi-                                        que mais versáteis, detinham inclu-
         ca adversa. Quando tal ocorre diz-                                            sivamente maior facilidade em mu-
         se que o navio virou por davante                                             Des. José Cabrita  dar de fundeadouro e de pesqueiro
         caindo a ré. Mas, para que se possa                                           sempre que se alteravam as condi-
         aproveitar esta possibilidade, é ne-                                          ções meteorológicas ou de pesca,
         cessário que, na orça, o navio con-                                           prestando apoio vital aos pescado-
         siga chegar muito próximo da linha                                            res a bordo dos seus dóris.
         do vento (menos de 5º).                                                        De realçar ainda que o navio re-
           Por outro lado, se a opção pas-                                             dondo é mais seguro, pois permite,
         sar por virar em roda a sua execu-                                            em caso de urgência, carregar todo
         ção apenas requer alguma coorde-                                              o pano em menos de um minuto,
         nação, acompanhando-se a acção                                                o que não sucede no navio lati-
         do bracear das vergas com a varia-                                            no cuja manobra é, neste aspecto,
         ção da marcação do vento, à me-                                               mais morosa.
         dida que o navio arriba por acção                                              No essencial, por ser no navio
         do efeito do leme. Neste segundo                                              redondo muito maior o volume e a
         caso o navio irá perder barlavento,                                           complexidade dos trabalhos, tam-
         o que poderá ser contraproducen-                                              bém recaiu sobre ele a preferên-
         te ou mesmo inviabilizar a mano-                                              cia de muitas Marinhas do planeta
         bra se esta se realizar em espaços                                            Água, quando estas se decidiram
         confinados, ou na proximidade                                                 pela adopção de um navio-esco-
         de perigos.                                                                   la veleiro.
           Nestas manobras que acabámos   Manobra de virar por davante no navio de pano latino.  Apesar de conhecerem utilização
         de descrever o navio latino detém algumas  maior complexidade do seu aparelho e o nú-  diversa, a Marinha Portuguesa viu-se bafejada
         vantagens. Em primeiro lugar, e mais uma  mero de cabos envolvido na manobra de cada  pela fortuna ao conservar dois grandes veleiros
         vez devido à disposição das velas a bordo,  uma das respectivas velas. Por outro lado, e  – a Sagres e o Creoula –, cujas características
         mesmo a uma velocidade muito reduzida  ainda relacionado com o factor humano, o  superficialmente conferimos.
         – 1 nó – não será complicado fazê-lo virar  pano redondo obriga a que os marinheiros   Que não lhes faleça o vento para que a Es-
         por davante. Contrariamente ao navio redon-  subam aos mastros, sempre que se pretende  cola se perpetue também!
         do, em que esta manobra assume particular  largar ou ferrar uma vela. Tal pode ocorrer em             Z
         complexidade, no navio latino a sua simpli-  difíceis condições de vento e mar, com os ris-  António Manuel Gonçalves
         cidade não poderia ser maior, não havendo  cos daí decorrentes. Já no navio latino toda a          CTEN
         lugar a grandes cuidados excepto no provo-  manobra de largar ou abafar uma vela é exe-  am.sailing@hotmail.com
         car um certo desequilíbrio no sentido de fa-  cutada ao nível do convés.  Notas:
                                                                                 1
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         zer aumentar a sua tendência para a orça. O   Somando à primeira vista tantas vantagens   espaço a esta simples reflexão, abster-nos-emos de
         que se pode conseguir colocando a meio a  então porque é que o navio latino nem sempre   invocar as diferenças entre vento verdadeiro e ven-
         retranca da mezena e abrindo as retrancas  foi escolhido pelos armadores? Ora a resposta   to relativo.
                                                                                 2  Embora menos utilizada esta expressão reflecte
         das velas situadas mais a vante. Neste caso,  a esta pergunta fica a dever-se, no essencial, a
         como se pode observar na imagem, o navio  duas grandes razões, o tipo de carga e as ro-  melhor a realidade do que a muito propalada «área
                                                                               vélica».
         não perde barlavento.              tas a praticar.                      3  Parte para onde sopra o vento, oposto a barla-
           Quanto ao virar em roda, apesar de o segui-  Na realidade o tipo de carga só teve peso   vento.
         mento ser seriamente afectado quando o vento  na escolha do aparelho quando esta assumiu   4  Todos os fluidos se comportam desta maneira, des-
         caminha na direcção da popa, ainda assim a  importância económica ao nível da rapidez   locando-se do ponto de maior para o de menor pres-
                                                                               são, até que se atingir nova situação de equilíbrio.
         coordenação exigida não constitui aspecto de  do seu transporte. Talvez não tenha ficado cla-  5  A marcação é o ângulo medido entre a linha
         maior relevância em relação ao navio redon-  ro, mas, num navio redondo, com mastros de   proa-popa do navio e a linha que liga o observador
         do, embora um pouco mais complexo e alvo  igual guinda, podemos dispor de uma muito   a um objecto exterior marcado, ou ao próprio vento.
         de maior atenção por comparação com a res-  maior superfície vélica, com reflexos óbvios   A medição deste ângulo tem origem na proa (0º) po-
         pectiva manobra de virar por davante.  na sua velocidade. Pelo mesmo motivo, em   dendo ser feita por bombordo (BB) ou estibordo (EB),
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           Parece-nos, no entanto, que em espaços  viagens inter-oceânicas, quando se pode tirar   6  Correcta orientação do pano em relação ao vento.
         confinados as vantagens se distribuem equi-  pleno partido dos ventos gerais, bem como da-  7  Dar movimento às vergas para que estas possam
         tativamente por ambos os tipos de navios. Se  queles que sopram intensamente em determi-  ser colocadas no ângulo correcto em relação à mar-
         por um lado o navio latino consegue virar por  nadas épocas do ano (monções), estes navios   cação do vento.
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         davante com grande facilidade, não é menos  não conhecem rival. Não admira, pois, que o   da qual se estabelece a orientação das vergas num
         verdade que o navio redondo, pelas carac-  navio latino tenha visto a sua utilização con-  navio redondo.
         terísticas das suas principais velas, detém a  signada quase em exclusivo à navegação de   9  Resta recordar que uma bolina tão cerrada exi-
         capacidade única de poder andar a ré. Este  cabotagem, quando se pretende navegar pró-  ge desenho muito particular das linhas de casco e da
         aspecto, aparentemente de somenos impor-  ximo da costa, frequentemente sujeita a cor-  respectiva quilha, sob pena da aparente vantagem se
                                                                               ver traduzida num abatimento excessivo, seguramente
         tância, revela-se extremamente útil em muitas  rentes fortes e alterações súbitas na direcção   menos benéfica do que a preterida navegação menos
         e variadas situações.              e intensidade do vento e das brisas, estas últi-  chegada ao vento.
           Em jeito de balanço diremos que, em regra,  mas em grande parte provocadas pelo aque-  10  Leme a barlavento.
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         não existindo qualquer tipo de constrangimen-  cimento diferenciado das terras adjacentes .   12  Leme a sotavento.
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         tos, o navio redondo virará em roda e o latino  Ou ainda numa utilização intensa em todo o   na opção de utilizar a caravela nas viagens de explo-
         por davante.                       Atlântico Norte, em qualquer época do ano,   ração, no século XV.
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