Page 2 - Revista da Armada
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FERNÃO MENDES PINTO
Fernão Mendes Pinto nasceu em Montemor-o-Velho por perto de 1510, oriundo de uma família
modesta que alguns dizem, sem grande propriedade, ter sido de cristãos novos. Sabemos que
veio para Lisboa em 1521, chegando na altura das exéquias do rei D. Manuel, falecido a 13 de
Dezembro. Por infelicidade ou por espírito de aventura, abandona a protecção familiar e embarca
num navio que parte para o sul. É ele próprio que nos conta como foi atacado e preso por piratas
franceses, dispostos a vendê-lo como escravo em Larache, mudando de ideias quando deitaram a
mão a outro navio, vindo de S. Tomé, com melhores riquezas. Largaram-no, com os seus companhei-
ros, na praia de Melides, de onde passou a Santiago do Cacém e a Setúbal. Serviu depois em casa de
um fidalgo, de nome Francisco Faria, mas os sonhos de uma vida diferente, certamente preenchida
com riquezas que não tinha nem poderia ter na pacatez de um serviço doméstico, não deixaram de
o atormentar. Em Março de 1537 partiu para a Índia, na armada de D. Pedro da Silva da Gama, al-
cançando a barra de Diu em Setembro desse mesmo ano. Poucos dias depois ia a caminho do Mar
Vermelho, dando início a um percurso épico e atribulado, espelho do que foi a vida de muita gente
lusa, deambulando pelas sinuosas vielas do Mundo Oriental do século XVI. Um mundo onde nada
era seguro e definitivo, e as fronteiras que separavam a riqueza e a glória do sofrimento ou da morte
eram tão ténues e súbitas como o aparecimento de um tufão ou o estalar dos dedos de um qualquer
mandarim ambicioso, que tanto acolhia e agasalhava como mandava matar.
AChina da primeira metade do século XVI era uma enorme potência consumidora que comprava
todo o tipo de mercadorias. Por isso os navios acorriam a vários pontos da sua costa, dando corpo a
um movimento comercial de enorme dimensão, a que se dedicaram muitos portugueses, nalguns ca-
sos enriquecendo, noutros perdendo a vida ou arrastando-a cruelmente pelos cárceres chineses. Fernão
Mendes Pinto é um exemplo dessa diáspora lusa, sempre no fio da navalha, navegando daqui para
ali, comprando e vendendo o que havia e sonhando com o regresso à sua terra com a bolsa cheia. Por
mais de vinte anos percorreu os mares do Oriente, passando pelo Pegu, Sião, Malaca, Samatra, Java,
China e Japão, deixando-nos um relato de todas estas viagens e aventuras a que chamou Peregrinação,
descrevendo-nos essa fase da sua vida como uma busca do sagrado e de uma purificação pessoal, que
obtém com o regresso a casa e ao remanso de uma quinta que comprou no Pragal, no termo de Almada.
O texto da obra tem sido alvo de considerações e críticas diversas, contestando os factos descritos
e acusando-o de efabulação.APeregrinação não é um livro de História, mas de aventuras. E todos nós
sabemos o que são as “aventuras de marinheiros”. Todos ouvimos o que nos contou a geração an-
terior, e rimos se nos falam de “sudoeste rijo”, porque outros nos falaram desse vento como se nou-
tros tempos ele fosse diferente do que é hoje, ou como se as novas gerações nunca pudessem com-
preender como eram valentes e fortes os homens de então. Fernão Mendes Pinto é essencialmente
um velho marinheiro a contar-nos como eram terríveis os temporais do tempo dele – piores do que
quaisquer outros –, como os piratas do Mar da China eram tantos como já não há e tão cruéis como
nunca se viu. Mas, a par destes exageros, que compreendemos, a Peregrinação é um testemunho da
vida nos mares do Oriente, no século XVI: as noites de chuva, o vento que rasga as velas, as amar-
ras que partem, as vagas que varrem o convés, o sono, o cansaço, a fome, o medo, são elementos le-
gítimos e verdadeiros da narrativa, tão intensos como a própria realidade. Escreveu este magnífico
texto quando já vivia na sua Quinta do Pragal, onde passou os últimos 25 anos da sua vida e onde
se supõe ter falecido a 8 de Julho de 1583.
J. Semedo de Matos
CFR FZ